sábado, 15 de maio de 2021

Aparição - Capítulo 7

 

7.

Só no dia seguinte eu soube que a nossa conversa em casa do engenheiro tinha sido largamente comentada em casa dos Cerqueiras. (...)


(70)

Mas com quem falei primeiro foi com Sofia. Era um sábado e chovia desde alta noite. Lembro-me bem dessa primeira chuvada de Inverno, porque a chuva tem para mim o abalo da revelação e abre como auréola o halo da memória ao que nela aconteceu. Subtilmente, aliás, é à vibração inefável das horas da natureza que eu posso reconhecer melhor o que me vivi no passado. Um sol matinal, a opressão das sestas do Verão, o silêncio lunar, os ventos áridos de Março, os ocos nevoeiros, as massas pluviosas, os frios cristalizados são o acorde longínquo da música que me povoa, tecem a harmonia vaga de tudo o que fiz e pensei. (...)

Quando leio estas palavras, abre-se-me um espaço de evocação que não sou capaz de situar nem de particularizar, mas que me enche e me faz sentir vivo de uma estranha maneira, porém boa e autêntica, embora intransmissível. Talvez seja isto que, um pouco mais à frente, Vergílio Ferreira diz:

Conheço uma certa emoção das horas, sei da aparição dos instantes-limite, das vozes submersas, e gostava de dar aos outros essa notícia. Há uma vida atrás da vida, uma irrealidade presente à realidade, mundo das formas de névoa, mundo incoercível e fugidio, mundo da surpresa e do aviso. Assim o próprio presente pode ter a voz do passado, vibrar como ele à obscuridade de nós. A minha retórica vem do desejo de prender o que me foge, de contar aos outros o que ainda não tem nome e onde as palavras se dissipam com a névoa do que narram.


(74)

- Ouça, doutor: se alguma coisa me preocupou sempre foi ser consequente, unir o que faço ao que sinto. Porque não faz o mesmo?

Conseguimos habitualmente distinguir o fazer do sentir, embora eles estejam interligados, influenciando-se mutuamente de formas que ainda não entendemos completamente. No entanto, todos sabemos que o sentir, principalmente quando é intenso, se sobrepõe ao pensar, capturando este e pondo-o ao seu serviço (por isso é que encolerizados, assustados ou tristes podemos decidir fazer coisas de que nos arrependemos depois). Portanto, há que resistir, não para destruir o sentir, mas para conseguir uma colaboração mútua com o pensar e o atuar. Se não o fizermos, o resultado pode ser o de Sofia: solidão e uma espiral autodestrutiva a desembocar num beco sem muitas saídas.

Aliás, todos sentimos que há algo de selvagem neste desafio de Sofia. E, se não sentimos, o autor induz-nos a senti-lo nas reações de Alberto. De qualquer maneira, irmos a reboque das emoções e dos sentimentos não é liberdade, mas apenas uma ilusão dela.

Por outro lado, o que é verdadeiramente difícil é unir o que faço ao que penso ser justo e correto. Estarei a ser muito pessimista quando disser que, quase sempre, temos medo de o fazer? Quanto às emoções, é bem mais fácil: basta deixarmo-nos arrastar por elas... e quantas vezes o fazemos! Precisamente, por exemplo, quando temos medo de atuar de acordo com as nossas convicções mais elevadas!...


(74/5)

(...) Mas ela, com uma energia que era eficaz por me pôr diante de mim, por vir dela - um ser frágil -, repeliu-me com raios no olhar.

Senti-me miserável como quem é apanhado nu: (...)

Sofia despreza Alberto porque este limita-se a ir atrás do que sente, em primeiro lugar. Em segundo, porque ele atua em reação ao desafio dela, não em função da sua verdade mais profunda. Ficamos na dúvida sobre a autenticidade do gesto de Alberto.


(76)

Sofia falava. (...) Que havia, pois, mais para a vida, para responder ao seu desafio de milagre e de vazio, do que vivê-la no imediato, na execução absoluta do seu apelo? Eliminar o desejo dos outros para exaltar o nosso. Queimar no dia-a-dia os restos de ontem. Ser só abertura para amanhã. A vida real não eram as leis dos outros e a sua sanção e o seu teimoso estabelecimento de uma comunidade para o furor de uma plenitude solitária. O absoluto da vida, a resposta fechada para o seu fechado desafio só podia revelar-se e executar-se na união total com nós mesmos, com as forças derradeiras que nos trazem de pé e são nós e exigem realizar-se até ao esgotamento. Este «eu» solitário que achamos nos instantes de solidão final, se ninguém o pode conhecer, como pode alguém julgá-lo? E de que serve esse «eu» e a sua descoberta, se o condenamos à prisão? Sabê-lo é afirmá-lo! Reconhecê-lo é dar-lhe razão. (...)

Leio isto fascinado. Sinto um impulso quase irresistível para uma adesão total. Mas, Depois, começam a surgir-me uns alertas.

O primeiro é que "Eliminar o desejo dos outros" não é eticamente recomendável, além de ser pouco útil. Porque, ao tentarmo-lo, os outros vão resistir, não vão deixar que isso aconteça, obviamente. E isso trará, na melhor das hipóteses, demasiado ruído para um esforço que necessita de calma e concentração de esforços. Na pior, pode levar à tentativa de os outros nos destruírem (que é o que vai acabar por acontecer).

O "erro" aqui de Sofia é imaginar que aquele «eu» original existe independente dos outros, que faça ela o que fizer, ele não será afetado pela existência dos outros «eus». O ser humano é inerente e inatamente social: sabemos disso logo no início deste romance com o efeito que a aparição da mulher do narrador tem sobre este.

O segundo é que este «eu» e as suas forças nem sempre são de plenitude (já não falo de felicidade). Vivê-los até «até ao esgotamento» pode ser entrar numa espiral de violência contra os outros e contra nós mesmos, sem isso implicar que vivamos uma vida mais plena de significado.

Mas, sem dúvida, esta proposta fascina-nos:

(...) Que ao menos nós lhe dêmos, a isso que somos, a oportunidade de o sermos até ao fim. Gritar aos astros até enrouquecermos. Iluminarmos a brasa que vive em nós até nos  consumirmos. Respondermos com a absoluta liberdade ao desafio do fantástico que nos habita. (...)


- Meu bom assassino...


Aparição - Capítulo 10

  10. Trabalho no Liceu com entusiasmo - o entusiasmo do principiante, ou seja, do que ainda está criando. (...) (108) (...) Mas eu sabia, e...