1.
Pelas nove da manhã desse dia de Setembro cheguei enfim à estação de Évora. (...)
(13)
Está uma manhã bonita, com um sol íntimo dourando o ar,
um vento leve da planície, fresco de orvalhos.
É a primeira “intervenção” de muitas da cidade de Évora. Cidade
– Personagem? Ou espaço ao serviço das personagens? Isto é, saberemos do estado
de espírito das personagens pela maneira como veem e sentem a cidade? A
resposta à segunda parte da pergunta parece-me evidente que é positiva. Mas eu
acarinho a ideia de que Évora é também uma personagem deste livro, é certo que
uma personagem com muitas faces e muitas ressonâncias, mas personagem apesar de
tudo.
(18)
Relembro. Uma grande mesa oval resplandecente de
brancura, cristais, reflexos de louças, dois grandes candeeiros de globos
pálidos, e fora, pelos espaços da noite nua, uma memória grande de paz. Um
longo abraço, quente de ternura, sufoca-nos a todos na procura de um refúgio,
de uma alegria perdida quando? onde? o sonho não é de nunca.
«Uma alegria perdida» talvez quando a mãe começa a
afastar-se do bebé. Quando os pais começam a afastar-se. Ou seja, quando saímos
ou somos obrigados a sair da infância.
2.
Inútil tentar dormir. (...)
(...) Quer saber onde é que o pode encontrar.
3.
Mas não foi fácil encontrarmo-nos. (...)
(31) Apresentação das personagens femininas deste romance.
Uma constante na escrita de Vergílio Ferreira: mulheres surgem-nos mitificadas pelo olhar do narrador. Penso que tem a ver com o facto de, no tempo da ditadura, durante os primeiros anos de vida em que as raparigas “aparecem”, os rapazes eram afastados e dificilmente podiam conviver com elas.
No caso de Vergílio Ferreira (que esteve vários anos
num seminário), acrescenta-se o afastamento da mãe que terá deixado uma
“ferida” aberta e uma sede de uma mulher maior que a vida capaz de preencher
esse vazio original e capaz de curar essa “ferida”.
Mas isso tudo pertence ao passado, poder-se-á argumentar.
Pois, mas é o passado a matéria romanesca da maior parte dos seus romances.
Porque, segundo Vergílio, só o passado abre o espaço à evocação maravilhada.
E quando se junta o feminino e a arte, como quando Cristina
toca piano em (35 e 36), então surge aos nossos olhos de leitores o testemunho de uma vivência simplesmente
extasiada.
(32)
Mas a arte não era para mim um mundo da letra impressa,
uma estúpida invenção de passatempo ou de vaidade: era uma comunhão com a
evidência, uma reencarnação na verdade de origens (…)
Pelo menos em Vergílio Ferreira, a arte é isto. Mas eu partilho
desta visão da arte que ele, aliás, desenvolveu extensamente na sua obra
ensaística.
(32)
Sim, Ana. Essa tua inquietação, essa tua fúria
silogística, o desejo encarniçado de demonstrares, deram-me cedo a certeza de
que nada em ti estava seguro.
É interessante como, abominando Vergílio Ferreira a
psicologia (como veremos confirmado mais à frente), ele nunca deixa de ter
observações psicológicas absolutamente perspicazes e certeiras (e que nada têm
a ver com a habitualmente chamada “psicologia de café”).
(34)
Imprevistamente, Ana regressou à sua obsessão:
- Há uns versos no seu livro que me intrigam. Dizem
assim, mais ou menos:
Do sangue nascem os deuses
que as religiões assassinam.
Ao sangue os deuses regressam
e só aí são eternos.
- Ah, não! - clamou Moura, bruscamente acordado na sua
sobremesa. - Deixem Deus sossegado e o doutor Soares também.
E Vergílio Ferreira não nos diz mais nada sobre estes
versos, deixando a nós, leitores, o trabalho e o prazer de os interpretar. Eis
uma das coisas que mais aprecio neste escritor: como ele diz noutro lugar, ele
assume sempre que o leitor é inteligente. E muito eu aprecio isso!
Como os interpreto eu? Com a ajuda de outras leituras que fiz
de Vergílio Ferreira, suponho que os deuses nascem da nossa profunda
fragilidade humana e da correspondente necessidade de alguma segurança.
Nomeadamente, o ser humano sabe, ao contrário dos outros animais, que vai
morrer. Este conhecimento seria insuportável se estivesse sempre presente no
nosso espírito e se não tivéssemos um viés do otimismo impregnado em nós (ver
Tali Sharot (2012). The Optimism Bias. Londres: Constable &
Robinson Ltd.). Mas é uma realidade incontornável. Porém, além disso, os seres
humanos precisaram de se apoiar em alguém mais poderoso e protetor do que eles
e dessa necessidade profunda surgiram os deuses.
Porém, a institucionalização dessa criação tornou-a estúpida
e vazia de sentido e, por consequência, “Deus morreu”. Mas a necessidade e a
busca original ainda continuam vivas e angustiantes no ser humano, no mais
fundo de si.
Também interpreto este poema como querendo alertar-nos para o risco de, ao querer encaixar os nossos valores mais profundos num regulamento ou numa instituição, poderem perder o seu fulgor e deixarem de ser uma fonte de motivação e de força interiores. Os nossos valores mais autênticos é ao mais fundo de nós que os devemos procurar e tentar encontrar, não fora de nós. Encontrados aí no nosso íntimo profundo, é aí que eles viverão talvez para sempre.
(35)
Cristina toca: E então eu vi, eu vi abrir-se à nossa frente o dom da revelação.
(39)
E, todavia, como é difícil explicar-me! Há no homem o dom
perverso da banalização. Estamos condenados a pensar com palavras, a sentir em
palavras, se queremos pelo menos que os outros sintam connosco. Mas as palavras
são pedras. Toda a manhã lutei não apenas com elas para me exprimir, mas ainda
comigo mesmo para apanhar a minha evidência. A luz viva nas frestas da
janela, o rumor da casa e da rua, a minha instalação nas coisas imediatas
mineralizavam-me, embruteciam-me. Tinha o meu cérebro estável como uma pedra
esquadrada, estava esquecido de tudo e no entanto sabia tudo. Para
reparar a minha evidência necessitava de um estado de graça. Como os
místicos em certas horas, eu sentia-me em secura. (…)
Palavras para acordar a consciência (no sentido de "awareness", não no sentido de "conscience", nem de "consciousness"). Depois, para guardá-la na memória. E palavras para, exprimindo-me, chegar aos outros, seja como "informação", seja como "obra de Arte".
O facto é que muitos insights são relâmpagos, não são dias claros e longos. O problema é sempre como voltar ao estado de graça inicial. Escrevemos para mais tarde podermos agarrar aquela evidência. Só que, fora do estado de graça, aquelas palavras tornam-se opacas, obscuras e deixam de fazer sentido para nós. Isto, claro, porque não somos Vergílio Ferreira. De cada vez que leio umas páginas deste livro, o estado de graça reacende-se como se estivesse sempre ali, apenas à espera de que uma luz o ilumine. Vergílio Ferreira é sempre essa luz constante e única.
(41)
(…) A verdade aparece e desaparece. Deus, a imortalidade
e uma ideologia política e a sedução de uma obra de arte e a sedução de uma mulher
– onde começam?, onde findam? Sou um indizível equilíbrio interior. Vivi, agi,
toquei com as mãos tanta ilusão consistente. Depois a ilusão desfez-se. (…) Não
cabe. Como não cabe a simpatia das mulheres que aborreci. Como não cabem as
anedotas da infância, que já não têm graça nenhuma. Como não cabe nada do que
já não sou eu. Não discuto, agora, não discuto! Sei lá porque é que uma anedota
de que ri não tem hoje para mim graça nenhuma! Sei só que a não tem.
O mistério das coisas que nos encantaram e que, depois,
perderam todo o brilho. O reverso disto é o Curse of Knowledge bias: nós
já não nos lembramos do que é não saber, não dominar uma determinada
competência. Por exemplo, o que me é não saber ler? Ou me não saber andar de
bicicleta? Por já não conseguirmos evocar essas experiências antigas de
“ausência” desse conhecimento, fica irremediavelmente perdida a surpresa
fascinada das primeiras leituras ou dos primeiros passeios de bicicleta sem
cair.
Como é fulcral este equilíbrio interior! Que evidencia como as razões vivem póstumas à decisão inconsciente, que é feita lá onde não chegamos. Mais, de as razões serem supérfluas e, na verdade, "não verdadeiras". Por isso, a exclamação «Sei lá porque (...)!». Razões que são muitas vezes apenas construções artificiais que procuram aprisionar o indizível.
(41)
E, todavia, pesa-me como uma pata de violência a realidade da pessoa que somos. Há muita coisa a arrumar, a harmonizar, muita coisa ainda a morrer. Mas por enquanto está viva.
Esta «realidade» que sei que vai acabar. Mas sei-o apenas com um conhecimento académico, praticamente impossível de sentir verdadeiramente, a não ser em momentos de exceção. Podemos somente não ignorar o confronto dessa minha «realidade da pessoa» que sou com a ideia de morte, não tentando aliviar a tensão aí criada, a fim de ser inteiramente humano. E poder apreciar integralmente a dádiva de estarmos vivos.
(41)
Por enquanto sinto a
evidência de que sou eu que me habito, de que vivo, de que sou uma entidade,
uma presença total, uma necessidade do que existe, porque só há eu a existir,
porque eu estou aqui, arre!, estou aqui, EU, este vulcão sem começo nem fim, só
actividade, só estar sendo, EU, esta obscura e incandescente e fascinante e
terrível presença que está atrás de tudo o que digo e faço e vejo - e onde se
perde e esquece. EU! Ora este «eu» é para morrer. Morre como a intimidade de
uma casa derrubada. Sei-o com a certeza absoluta do meu equilíbrio interior.
Mas como é possível? Agora eu sou essa intimidade, agora eu sou o seu espírito,
a sua evidência.
Mais uma vez, uma bela aproximação do Eu Observador. Como já referimos no final da postagem anterior, pela sua própria natureza, o Eu Observador não é suscetível de ser descrito pela linguagem, como Steven C. Hayes nos diz na obra referida: (…) the observing self is not an object of verbal relations. That is why we “know” less about it. The observing self is not a content-based sense of self that can be described directly. (…).
(...) Agora eu sou essa intimidade, agora eu sou o seu espírito, a sua evidência.
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