9.
E a vida recomeçou. (...)
(83)
(...) Fixar uma vida em torno de uma ideia, de um sentimento, como é difícil! À unidade que nos pré-existe a cada um, à unidade de sermos, a vida imediata, quotidiana, é uma selva de caminhos, de veredas, de confusa vegetação. Tão fácil perdermo-nos! O mais grave, porém, é que na sua rede muitas vezes não sentimos que nos perdemos. Cada caminho impõe-se-nos na sua presença imediata. Um caminho é «o» caminho em cada instante que passa. (...)
E isto é tão verdade, desde as coisas mais prosaicas (como atermo-nos a um projeto de trabalho que nos apaixona) até às mais metafísicas (como descobrirmos o que de diferente e bom nos acontece momento a momento). Distraímo-nos, pensando que não e só a posteriori é que damos conta do engano e da perda de tempo.
Vergílio alerta-nos para o que pode correr menos bem quando se trata dos caminhos que podemos encontrar (ou desencontrar) no sentido de alcançar uma maior consciência e aí permanecer. Como se se tratasse de uma espécie de guia de auto-orientação ou de um mapa para um viajante metafísico.
(86)
(...) Mas o curso não era para entreter, era para lhe firmar uma... uma consciência. Sem dúvida, num curso pouco se aprende. Mas dá-nos pontos de referência, talvez nos dê uma certa forma de responsabilidade.
Boa questão: para que serve um curso? A 16 de Agosto de 1971, Vergílio diz no seu Conta-Corrente 1 (p. 93) que «A educação traça um horizonte de possíveis ao possível que se é.» Concordo em absoluto, desde que a área de conhecimento que estamos a "desbravar" esteja alinhada com os nosso interesses e afetos, caso contrário o curso servirá para muito pouco.
Em mim, veja-se a diferença entre o que a Engenharia Civil e a Psicologia contribuíram para me enriquecer como pessoa. Basta dizer que tenho o curso de Engenharia, mas não "sou" engenheiro; enquanto que, no que se refere à Psicologia, eu integrei-a na minha vida do dia-a-dia, na forma como me relaciono com os outros e naquilo que sou (ironicamente, apesar de nunca ter chegado a ser oficialmente um Psicólogo).
Portanto, um curso pode ser uma oportunidade excecional para crescermos como pessoas. Porque, quanto a aprender, aprende-se, não bem pouco, mas muita coisa "ao lado" do que nos é verdadeiro. Para mim, a outra grande vantagem do curso de Psicologia (o de Engenharia nem para isso serviu) foi dar-me meios de aprender por mim próprio sobre tudo aquilo que posteriormente me veio a suscitar a minha curiosidade, ensinando-me a distinguir o que não presta daquilo que é fiável.
(87)
(...) Mas eu não te ensinei nada! Ninguém nos ensina nada, talvez, minha amiga. Só se consegue aprender o que nos não interessa. Porque o mais, o que é do nosso fundo destino, somo-lo: se alguém no-lo ensinou, não demos conta disso. Ensinar então é só confirmar.
Uma afirmação polémica de Vergílio, daquelas que eu gosto porque "acorda" a nossa curiosidade habitualmente cansada e, assim, promove descobertas imprevistas. Claro que aqui ele mistura dois níveis de forma provocadora: o pessoal e o académico. Eles estão habitualmente separados, mas houve momentos do curso em que eles se tocaram e se chegaram a interrelacionar-se: por exemplo, nas disciplinas de Psicanálise ou de Epistemologia das Ciências. A sensação que eu tive é que eram peças que se encaixavam perfeitamente no puzzle (incompleto!) que era o meu «eu» - uma espécie de confirmação, acho eu.
A última frase também é muito interessante. Quando saímos da posição de aprendente para a de ensinante, algo continua como se elas fossem dois pólos da mesmíssima coisa. Portanto, quando ensino, ou melhor, quando preparo as aulas e quando os alunos questionam o que eu digo, lá volta a sensação de um puzzle a completar-se. Aqui, sim, a confirmação do que sou, e do que defendo a partir do que sou (não apenas do que conheço).
(89)
(...) Depois fui político. Ser avançado era bom e verdadeiro como ter força e ser novo. Depois deixei de ser novo e de fazer barulho. E, quando não houve barulho, ouvi vozes obscuras, submersas a esse mesmo barulho. Depois a vida não teve significado, porque me estava sem emprego. Bom: então, deste grau zero, descobri que estava vivo, que existia, e era eu. E agora tento salvar essa extraordinária descoberta, pô-la a funcionar com o universo e a morte. Voilà.
Autobiografia política do próprio Vergílio? Bem provável.
(95)
(...)
- Tenho de ir indo.
- Já dei ordens para o jantar. Não seja cobarde e desmancha-prazeres.
Uma fúria de cães mastigou-me os nervos. Seria havia pecado que pudesse vexar-me, era esse da cobardia. (...) Não entendiam que assumir a miséria do homem, enfrentar o que humilhava a sua condição era um sinal de coragem mais profunda.
- Não sei o que pretende de mim - disse eu. - Mas sei que não sou cobarde.
- Então sente-se - respondeu, enquanto abria a mesa.
Vergílio disse anos mais tarde que faltava às personagens de Aparição uma grandeza que estava presente em Cântico Final. Sim, Alberto é um anti-herói, talvez não cobarde, mas em que a voz da submissão está muito presente. Veja-se este episódio em que Ana o coloca numa "no-win situation": se ele sair, é porque foge em cobardia; se ele ficar, é porque obedece... em cobardia, novamente. Como sair desta situação?
Uma via poderia ser expondo o jogo desonesto de Ana, rindo-se dos seus ardis e acabando a fazer o que realmente lhe apetecia - ir-se embora (porque ele não desejava a companhia de Ana, que tinha acabado de o insultar, nem certamente a de Alfredo ou de Chico). Mas ele fica. Submissamente.
(98 e 99)
(...) Chico (...) Irra, falemos claro: que pretende você?
(...)
(...) Adequar a vida (que é um pleno de ser, um absoluto, uma positividade necessária) com a morte (que é uma nulidade integral, uma pura ausência, um nada-nada).
- Sou materialista! - disse eu.
(...)
- É exactamente porque sou materialista que esse mundo me intriga. Se tivesse deuses para lhes recambiar estes seus bens não me interrogava duas vezes. Interrogo-me, porque a morte é um muro sem portas.
Extraordinária definição de morte. E tão simples: «um muro sem portas.»
(...) A casa no Alto.
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