Como introdução: Aparição talvez seja o romance mais extraordinário e único que já li em toda a minha vida longa de leitor. Só isto.
Sento-me aqui nesta sala vazia e relembro. (...)
(9)
Olho essa jarra, essas flores, e
escuto o indício de um rumor de vida, o sinal obscuro de uma memória de
origens.
Olho a minha cadeira. Em que é que
ela é minha? Em nada, apenas por uma convenção. E por eu estar vivo. Quando eu
morrer, ela continuará… como, sob que forma? De onde veio ela, que mãos lhe
mexeram, a moldaram, que pessoa a concebeu no papel? No fundo, que história
traz ela e que eu ignoro e esqueço sequer de perguntar? Ela existe nas suas
superfícies e na sua dureza utilitárias, mas ela é muito mais do que isso. É
como um dia, lá fora, que vejo pela minha janela. Uma imagem, apenas. Mas, se
eu olhar procurando compreender e abarcar a realidade que ali está, é todo um
mundo (a maior parte dele, de mistério) que se apresenta ao meu olhar.
Tento descobrir a face última
das coisas e ler aí a minha verdade perfeita. Mas tudo esquece tão cedo, tudo é
tão cedo inacessível.
É tão fácil um olhar de
superfícies, de opacidades, e também de borboleta. Mas, quando consigo olhar a
partir do lugar mais anterior de todos, anterior mesmo às palavras, explodem
momentos de iluminação. Infelizmente, depois, eles desaparecem e tornam-se até
inacessíveis à memória, em particular à sua evocação.
Sinto, sinto nas vísceras a aparição fantástica das coisas, das ideias, de mim, e uma palavra que o diga coalha-me logo em pedra.
A palavra que diga as coisas fixa-as e elas param de existir no fluir da existência, tal como elas são realmente. Talvez pior do que isso: a palavra nunca acerta. Nunca se encontra a palavra perfeita que revele, que transmita e que contenha tudo o que pretendemos. Não obstante, estamos sempre a tentar. Há milhares de anos. E, quando às vezes nos parece que conseguimos, se deixarmos passar algum tempo, todo o dito perde fulgor e exatidão, e torna-se não mais do que a sombra de uma sombra.
No entanto, vale a pena o esforço, sempre constante, sempre repetido, porque…
Nada mais há na vida do que o
sentir original, aí onde mal se instalam as palavras, como cinturões de ferro,
aonde não chega o comércio das ideias cunhadas que circulam, se guardam nas
algibeiras.
Sim, também preciso de me libertar das ideias que me foram postas pelos outros para explicar tudo, para me tapar a originalidade profunda de tudo quanto existe em mim e à minha volta.
(10)
E eu te digo que nada estava ainda escrito, porque é novo e fugaz e invenção de cada hora o que nos vibra nos ossos (...)
Nós inventamos momento a momento. Podemos fazê-lo com as ruínas do nosso passado; ou da nossa rotina. Mas também podemos abrir-nos para o que há de novo. A minha pergunta "O que é que de bom me está a acontecer agora, neste preciso momento?" pode ser uma via para entrar em contacto com esse sentir original, para essa invenção do que ainda não aconteceu ou, melhor, do que nunca realmente aconteceu.
E outra vez agora me deslumbra,
em alarme, a presença iluminada de mim a mim próprio, o eco longínquo das vozes
que me trespassam.
Um “Eu Observador”(1) que, sem ver propriamente, pressente
todo o imenso ruído que constitui a minha vida, tanto interna como externa.
Mas, afastado este ruído, eis que me surge…
Mas esta simples verdade de que
estou vivo, me habito em evidência, me sinto como um absoluto divino, esta
certeza fulgurante de que ilumino o mundo, de que há um fora que me vem de
dentro, me implanta na vida necessariamente, esta totalização de mim a mim
próprio que me não deixa ver os meus olhos, pensar o meu pensamento, porque ela
é esses meus olhos e esse meu pensamento,
Trata-se de conseguir ir-me
colocando atrás, cada vez mais atrás, até chegar a um lugar onde já não há mais
nenhum atrás. Aí me torno o ser original, que se manifesta por um olhar original,
que sente o que Vergílio aqui descreve.
esta verdade que me queima
quando vejo o absurdo da morte, se pretendo segurá-la em minhas mãos, revê-la
nas horas do esquecimento, foge-me como fumo, deixa-me embrutecido, raivoso de
surpresa e de ridículo...
É difícil “ver” realmente a morte.
Nem sempre consigo. Então penso: como vai estar este objeto daqui a 20, 30 ou
40 anos, quando eu já não estiver para o ver? O objeto continua, na sua
imperturbabilidade, mas vazio, no meio de nada, porque eu já não existo, nada
existe, nem ilusões nem nada. Num momento, é o tudo em fulgor de novo e de
plenitude; noutro momento, nada. Como explica, a seguir, Vergílio Ferreira:
E, todavia, sei-o hoje, só há um
problema para a vida, que é o de saber, saber a minha condição, e de restaurar
a partir daí a plenitude e a autenticidade de tudo - da alegria, do heroísmo,
da amargura, de cada gesto. Ah, ter a evidência ácida do milagre do que sou, de
como infinitamente é necessário que eu esteja vivo, e ver depois, em
fulgor, que tenho de morrer. A minha presença de mim a mim próprio e a tudo o
que me cerca é de dentro de mim que a sei - não do olhar dos outros. Os astros,
a Terra, esta sala, são uma realidade, existem, mas é através de mim que se
instalam em vida: a minha morte é o nada de tudo. Como é possível. Conheço-me o
deus que recriou o mundo, o transformou, mora-me a infinidade de quantos
sonhos, ideias, memórias, realizei em mim um prodígio de invenções,
descobertas, que só eu sei, recriei à minha imagem tanta coisa bela e inverosímil.
E este mundo completo, amealhado com suor, com o sangue que me aquece, um dia,
um dia, - eu o sei até à vertigem - será o nada absoluto, dos astros mortos, do
silêncio. Mas tudo isto é quase falso, é quase estúpido só de estar a pensá-lo,
a dizê-lo, porque a sua evidência é um milagre instantâneo.
É o saber que tudo irá desaparecer
com a minha morte que vai dar uma tonalidade de milagre intenso à minha vida do
dia a dia. Assim eu não o esqueça! Assim eu não me distraia! Mas, sempre que o
conseguir, …
(11)
(…) é como se me purificasse num
tempo anterior à vida, num luminoso halo de coisas por nascerem.
Mais uma vez, como de todas as outras vezes, sinto-me apanhado pela magia da escrita de Vergílio Ferreira. A descobrir coisas novas e surpreendentes. Não como da primeira
vez, mas muito, muito mais do que a primeira vez. Porquê? Em parte, porque, na
primeira vez, o desejar saber como a história se irá
desenrolar se mete à frente. Sabida a história, ficamos disponíveis para tudo o resto que o
livro tenha para dar. Que, no caso de Vergílio Ferreira, é sempre imenso,
imenso.
Mas, e das vezes seguintes? Porque
é que sempre que releio um livro de Vergílio, ele surge-me, ele revela-se-me em
toda a sua maravilha, como se fosse uma primeira vez absolutamente deslumbrada?
Não sei, sei é que nunca se gasta e, quando releio, é sempre um novo livro que
me surge à leitura.
Tomo as suas mãos nas minhas e no deslumbramento da noite abre-se, angustiada, a flor da comunhão...
(1) Vejamos o que sobre o Eu Observador tem a dizer (tradução minha) o criador da Acceptance and Commitment Therapy, Steven C. Hayes:
(...) o eu observador não é um objeto de relações verbais. É por isso que "sabemos" menos sobre ele. O eu observador não é uma sensação de si mesmo baseada em conteúdos que podem ser descritos diretamente. (...)
A sensação de um lugar a partir do qual as observações conscientes são feitas é uma sensação estranha porque, para a pessoa que a experiencia, não tem limites conhecidos. Nunca se pode saber conscientemente os limites, porque todo o conhecimento verbal se referencia a si como um [outro] conhecedor.
Este "eu" é ilimitado na medida em que não podemos experimentar nada de que saibamos (ou, para ser muito precisos, de que saibamos que sabemos) sem que esteja nele o "você-como-perspectiva". (...)
(...) Aqui, mesmo no meio do próprio conhecimento verbal, está um evento sem delimitação. Eventos sem delimitação incluem nada [no-thing] (ou como a nossa comunidade linguística veio escrevê-lo mais tarde "nada" ["nothing"]) e incluem "todas as coisas" ["every-thing"]. (...)
Hayes, Steven C. (2005). Get Out of Your Mind and Into Your Life: The New Acceptance and Commitment Therapy / Steven Hayes & Spencer Smith. Oakland: New Harbinger Publications, Inc., p. 107
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