terça-feira, 6 de abril de 2021

Aparição - Capítulo 4

 

4.

Portanto, eu tinha um problema: justificar a vida em face da inverosimilhança da morte. (...)


Este capítulo é um dos mais complexos, ricos e interessantes deste livro. Vergílio Ferreira consegue condensar em quatro páginas uma quantidade infinita de sabedoria. Constituindo cada frase, por si só, uma unidade de reflexão independente ou quase independente das outras. Uma escrita extraordinária!


(43)

Portanto, eu tinha um problema: justificar a vida em face da inverosimilhança da morte. E nunca mais até hoje eu soube inventar outro. (...)

Ou seja, como viver totalmente presente, isto é, não distraído, não ausente, não entorpecido, não cego, etc.? Sabendo que vem aí a morte que nega tudo e tudo rasura?

Sim, quanto aos outros problemas sinto-os também um pouco como "invenções", que a maior parte deles não são tão reais assim (tanto que, passados uns anos, ou menos, esquecemos até que eles existiram).

Portanto, o problema: Se sei que vamos todos morrer, eu incluído, que valor pode ter a vida? aliás, pergunto-me muitas vezes: com tudo o que eu gasto e consumo para viver como vivo, de um ponto de vista objetivo, a minha vida vale tanto? Para, depois, acabar no nada? E, ainda por cima, esquecido, tão esquecido como se nunca tivesse existido. Confesso que às vezes tenho dúvidas.

São estas dúvidas que Vergílio pretende esclarecer neste capítulo. Dando uma resposta? Talvez não, talvez fazendo perguntas diferentes.

Mas há mais. A um nível mais imediatamente prático, como arranjar força para lutar contra a injustiça, a miséria, a prisão, sabendo que nada acaba e que tudo acaba? Mas, absolutamente, eu é que acabo e tudo acaba comigo, pois sou eu que me dou vida a essa luta e, acabando eu, acaba a luta para mim.


(43)

(...) - quantos modos de esquecer ou de não saber ainda o pequeno problema fundamental. (...)

Sim, tantas maneiras que a sociedade criou para nos distrairmos, para não pensarmos sequer! Temos essa pressão, mas acrescentamos-lhe outras da nossa lavra. Inventar problemas acessórios é, como vimos, uma delas. Além de que esquecer é algo que fazemos com muita facilidade. No fim de contas, a memória controlada pelo próprio ser vivo é um ganho evolutivamente recente. É como se este problema nos pesasse, como se a sua tensão fosse intolerável para uma vida que todos desejamos mais tranquila. Como diz Vergílio:


(43)

(...) E quantas vezes agora o esqueço? O mais forte em nós é esta voz mineral, de fósseis, de pedras, de esquecimento. Ela germina no homem e faz-lhe pedras de tudo. Assim, quando procuro em mim a face original da minha presença no mundo, o que descubro não é o alarme da evidência, o prodígio angustioso da minha condição: o que descubro quase sempre é a indiferença bruta de uma coisa entre coisas. (...)

Uma das razões pelas quais não acredito na iluminação budista é precisamente o facto de aquilo que, numa altura da nossa vida, constituiu uma iluminação, um relâmpago de sabedoria, desaparece sempre inevitavelmente. Com sorte, conseguimos ficar com alguns resíduos vivos, às vezes pistas que nos permitem chegar outra vez a um momento semelhante. Mas habitualmente nem isso.

Quando li a frase «quando procuro em mim a face original da minha presença no mundo», veio-me à ideia a definição de Mindfulness dada por Jon Kabat-Zinn: (...) awareness thar arises through paying attention, on purpose, in the present moment, non-judgementally.

Note-se que, para a palavra portuguesa consciência, os anglo-saxónicos têm pelo menos três diferentes: conscience (a nossa consciência moral), consciousness (a nossa consciência das coisas) e awareness (uma perceção e compreensão muito abrangentes de tudo o que se está a passar) que penso que só pode ter a tradução de "consciencialização".

Aquela definição está muito próxima do tipo de consciência que Vergílio defende. Repare-se que Jon Kabat-Zinn não diz, na definição, ao que a pessoa deve prestar atenção. Ora, a seguir, ele introduz uma pequena "batota", ao propor que prestemos atenção à respiração, o que, apesar de tudo, já é uma distração.

Vergílio Ferreira é, assim, muito mais radical (no sentido de sério e rigoroso). Ele pede a nossa atenção para o que é essencial e, como já o sabemos bem, «O essencial é invisível para os olhos...» (Antoine de Saint-Exupéry, O Principezinho, fala da raposa). E que "essencial" é este? Se fosse possível dizê-lo, isso significaria que ele se teria tornado visível, logo, não essencial...


(44)

E todavia, agora que me descubro vivo, agora que me penso, me sinto, me projecto nesta noite de vento, de estrelas, agora que me sei desde uma distância infinita, me reconheço não limitado por nada mas presente a mim próprio como se fosse o próprio mundo que sou eu, agora nada entendo da minha contingência. Como pensar que «eu poderia não existir»? Quando digo «eu», já estou vivo... Como entender que esta iluminação que sou eu, esta evidência axiomática que é a minha presença a mim próprio, esta fulguração sem princípio que é eu estar sendo, como entender que pudesse «não existir»?(...) E todavia eu sei que «isto» nasceu para o silêncio sem fim...

E do silêncio sem fim... Também tento imaginar o que era ser eu antes de ter nascido, quem é que estava «lá». Claro que a resposta racional é «nada». Mas imaginá-lo é um muro que não se consegue ultrapassar, pois nós estamos do lado de cá, do lado da existência e da vida.

Gosto mais de tentar este exercício, chamemos-lhe assim à falta de palavra melhor, porque estou menos contaminado culturalmente por narrativas fantasistas. Porque é curioso como a religião em que eu nasci e me criei não se ocupa do que éramos nós antes de nascer. Apenas se preocupa com o que acontece depois. Assim, parto para esta procura com um olhar mais puro.

E, de repente, eu existo-me como nunca existi antes. Porque do que eu fui só tenho uma memória e, agora, eu sou uma vivência. Que é sempre única e insubstituível. E exaltante. Que resulta do milagre (pois de um milagre se trata) de estar vivo.


(45)

Mas ofendo-te, velha mulher, aqui a desvendar a tua psicologia - eu, que detesto como um insulto essa coscuvilhice das minudências íntimas, esse ofensivo desmontar de relojoaria, como se um ser humano fosse um brinquedo.

Não posso deixar de pensar que Vergílio Ferreira tem toda a razão. Mas a nossa necessidade de para tudo encontrar causas e efeitos (não esqueçamos que o cérebro que faz isto foi-nos dotado pela natureza e pela evolução a fim de melhorar as nossas condições de sobrevivência) leva-nos a todos (até ao próprio autor) a cair sempre neste processo um tanto degradante, se não estiver iluminado pela empatia e pela compaixão.

Mas não só. Também o deve acompanhar a humildade de aceitar que nos «enganamos» sempre. Isto é, que, por mais inteligentes e perspicazes que sejamos, não conseguimos viver o que o outro está a viver, em primeiro lugar. Em segundo, quando traduzimos aquela tentativa de compreensão por palavras, estamos a destruir irremediavelmente a complexidade e a energia da pessoa objeto da nossa observação, reduzindo-a muitas vezes a uma caricatura falsa e cruel. Macbeth, pela mão de Shakespeare, de alguma forma alerta-nos:

Life's but a walking shadow, a poor player

That struts and frets his hour upon the stage

And then is heard no more: it is a tale

Told by an idiot, full of sound and fury,

Signifying nothing.

Ou, em português:

A vida é apenas uma sombra errante, um mau ator

A se pavonear e afligir no seu momento sobre o palco

E do qual nada mais se ouve. É uma história

Contada por um idiota, cheia de som e fúria,

Significando nada.


Em suma, Vergílio Ferreira detesta a Psicologia. a explicação e a descrição de como o ser humano funciona, porque o que é fundamental para a vida não é o "como", mas "o que" ou "quem" eu sou.


(...) assim eu esqueço tudo, e o que te resume, boa mulher, é esse teu velho álbum de fotografias, que tanta vez me explicaste por saberes que eu conhecia já a vertigem do tempo e me legaste depois para o guardar e eu tenho agora aqui na minha frente como o espectro das eras e das gentes que já mal sei e me fitam ainda do lado de lá da vida e me querem falar sem poderem e me angustiam como o olhar humano do Mondego dias antes de o António o matar.


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