A 30 de junho de 1993, José Saramago escreve nos Cadernos de Lanzarote - Diário I o seguinte:
Fernando Venâncio escreve no Jornal
de Letras um artigo — «O homem que ouviu desabar o mundo» — sobre o Vergílio
Ferreira, a propósito da Conta-Corrente. E em certa altura diz:
«Afirmei, um dia, levianamente, que a ascensão de Saramago se mantivera
invisível ao diarista Vergílio. Hoje, dou-me conta que, sob a referência
inofensiva, sob o próprio silêncio, é essa partida do destino um dos motores do
sofrimento. Vergílio Ferreira jamais perdoará isso aos fados. (E quem, no seu
lugar, perdoaria? Na nossa história literária são casos excepcionais as boas-vindas.
Deu-as António Vieira a Manuel Bernardes, soube-as dar Filinto a Bocage. Não há
memória de muitas mais.) Mas as autênticas contas de Vergílio com o seu tempo,
se englobam essa desgraça cósmica que lhe calhou, são bem mais vastas e mais
cruéis. Os considerandos poderão ser complicados, mas a tese é límpida: os
parvos ainda não perceberam que o romance acabou. Não que Vergílio o saiba de
observação, porque ele escassamente lê. “A obra dos outros, mesmo de muito
alteados no panegírico, não me interessa absolutamente nada” (p. 73, sublinhado
original). Há pior: “De vez em quando uma página ou outra de um autor
entusiasma-me e vexa-me mesmo por me entusiasmar” (ib.).» Não comento. Digo
apenas que Vergílio Ferreira, no fundo, não faz mal a ninguém. Dói-lhe e morde
onde lhe dói para que lhe doa ainda mais, e isso talvez seja uma forma de
grandeza.
Em 1997, Fernando Venâncio volta a reincidir
(Maquinações e Bons Sentimentos – “O render da guarda”, 2002, Campo das Letras,
p. 199):
(…) afirmam eles que não se divisam
no horizonte «alternativas». Foi exactamente o que, por obra e omissão, andaram
dizendo Torga e Vergílio, é o mesmo que declaram hoje Saramago e Cardoso Pires.
Enchem a paisagem, e dizem-se pesarosos de não haver mais paisagem. Nunca citam
um autor novo, nunca promovem publicamente um valor mais jovem. Desejaríamos
vê-los a fazê-lo, de viseira aberta, sem solidariedades viscosas, aceitando um
belo risco. Não, depois deles, vem aí o deserto.
Não irei explicar porque é que uma leitura literal e superficial da proposta de Vergílio Ferreira de que o romance estava a acabar não será, talvez, a mais correta nem a que fará mais justiça ao pensamento do autor. Também não explicarei a afirmação citada por Fernando Venâncio de que «“A obra dos outros (…) não me interessa absolutamente nada”», embora se lhe aplique o mesmo considerando (já agora, chamo a atenção para o facto de, para Vergílio Ferreira, um itálico ter um significado muito diferente do de um sublinhado - veja-se, um de entre muitos exemplos, o início e o fim de Aparição).
Não. Vou só referir-me ao alegado
silêncio a que Vergílio Ferreira condenou os seus contemporâneos mais novos nas
lides do romance. Alegado, porque a afirmação efetivamente não se sustenta em
confronto com os factos.
Limitar-me-ei à leitura que
Vergílio fez dos novos romancistas portugueses contemporâneos de quem gostou e por quem se
interessou, tendo dado disso pública notícia, tanto no diário, como em
entrevistas. Procurarei não incluir as referências que fez aos de que não
gostou (por exemplo, as muitas que fez a António Lobo Antunes ou a Vasco Pulido
Valente, entre outros). Não incluirei aqueles escritores sobre os quais não se pronunciou, mas de que apenas deu notícia de estar a ler.
Da sua geração, começarei por
incluir José Saramago, Miguel Torga, Agustina Bessa-Luís, António Alçada
Baptista, Carlos de Oliveira, João de Araújo Correia e Manuel Vinhas (não referirei Fernando Namora, ou Jorge de Sena, por
exemplo, pois destes sabe-se bem que ele os lia). Depois, passarei à geração
seguinte.
Esta não será uma lista exaustiva,
já que foram imensas as leituras e referências feitas por Vergílio. Apenas
apresentarei alguns exemplos mais significativos que procuram mostrar que
aquela afirmação não corresponde de forma alguma à realidade. Ficar-me-ei pelos
escritores portugueses (não incluirei sequer outros lusófonos) e apenas pelos
romancistas (excluirei, portanto, poetas, dramaturgos, ensaístas e filósofos,
todos também objeto de leituras por parte de Vergílio).
Começaremos com um comentário que
Vergílio Ferreira fez, com a sua habitual perspicácia e fina ironia, a
propósito do facto de grandes artistas, contemporâneos entre si, não se “verem”
uns aos outros:
21 de Agosto de 1973, Conta-Corrente
1, p. 164
21 - Agosto (terça). O diálogo entre os grandes génios. Só é possível se eles são de épocas diferentes. Na mesma época são mutuamente incompreensíveis. Só dizem asneiras uns dos outros. Ou simplesmente desconhecem-se. Joyce diz disparates de Stravinski. Gide de Proust. Eça de Mallarmé. Joyce e Proust não se entenderam e surdamente detestaram-se. Matisse ilustrou o Ulisses. Perguntaram-lhe: «Que tal o livro?» E ele: «Nunca o li.» Absorvidos no seu mundo, não compreendem o dos outros. Mas não nos arrepiam, a nós, pequenos, as muitas asneiras dos grandes. É lá com eles. Como no «entre marido e mulher», entre grandes «ninguém meta a colher». Joyce em Paris: não se deu praticamente com ninguém. E tinha já reputação à escala mundial. Não há diálogo possível entre os deuses de religiões diferentes. Só à espada, como soube Maomé e os nossos portugueses evangelizadores. E os católicos e huguenotes. Somos filhos dos grandes, como dos nossos pais. As questões entre uns e outros decidem-se em nós por um sorriso de simpatia.
Já mais esclarecidos sobre esta
questão, avancemos um pouco no nosso propósito.
A 31 de outubro de 1983, no seu Conta-Corrente
4, p. 421, Vergílio Ferreira fala de si como leitor:
(…) Por mim sou sobretudo leitor
e leio tudo o que me passa ao alcance. Certo camarada meu dizia-me há tempos
que eu tinha dificuldade em admirar. Não é verdade. Se realmente não gosto, não
é possível gostar. Pelo menos por então. Porque muitas vezes não gosto e mais
tarde o meu não gostar dá o dito por não dito. Mas habitualmente e facilmente,
gosto do que escrevem os outros. E fico sempre admirado de eles serem capazes
do que julgo que não sou. Excepto, obviamente, se um livro é grosseiro, lapuz,
escrito com os pés. Duas coisas realmente são necessárias para me vergar em
reverência: a inteligência e a sensibilidade. Duas coisas, aliás, que andam
normalmente juntas. É com isso que se faz o «estilo», o autêntico, não com
palavras envernizadas, passadas a pano e polirina, mas que nada adiantam em
sensibilidade inteligente. É o que pertence aos que escrevem «bem». (…)
Nas próximas postagens, provar-se-á que Vergílio Ferreira leu mesmo.
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