domingo, 14 de março de 2021

Vergílio Ferreira leu (e apreciou publicamente) escritores novos e obras novas - 1

 


A 30 de junho de 1993, José Saramago escreve nos Cadernos de Lanzarote - Diário I o seguinte:

Fernando Venâncio escreve no Jornal de Letras um artigo — «O homem que ouviu desabar o mundo» — sobre o Vergílio Ferreira, a propósito da Conta-Corrente. E em certa altura diz: «Afirmei, um dia, levianamente, que a ascensão de Saramago se mantivera invisível ao diarista Vergílio. Hoje, dou-me conta que, sob a referência inofensiva, sob o próprio silêncio, é essa partida do destino um dos motores do sofrimento. Vergílio Ferreira jamais perdoará isso aos fados. (E quem, no seu lugar, perdoaria? Na nossa história literária são casos excepcionais as boas-vindas. Deu-as António Vieira a Manuel Bernardes, soube-as dar Filinto a Bocage. Não há memória de muitas mais.) Mas as autênticas contas de Vergílio com o seu tempo, se englobam essa desgraça cósmica que lhe calhou, são bem mais vastas e mais cruéis. Os considerandos poderão ser complicados, mas a tese é límpida: os parvos ainda não perceberam que o romance acabou. Não que Vergílio o saiba de observação, porque ele escassamente lê. “A obra dos outros, mesmo de muito alteados no panegírico, não me interessa absolutamente nada” (p. 73, sublinhado original). Há pior: “De vez em quando uma página ou outra de um autor entusiasma-me e vexa-me mesmo por me entusiasmar” (ib.).» Não comento. Digo apenas que Vergílio Ferreira, no fundo, não faz mal a ninguém. Dói-lhe e morde onde lhe dói para que lhe doa ainda mais, e isso talvez seja uma forma de grandeza.

 

Em 1997, Fernando Venâncio volta a reincidir (Maquinações e Bons Sentimentos – “O render da guarda”, 2002, Campo das Letras, p. 199):

(…) afirmam eles que não se divisam no horizonte «alternativas». Foi exactamente o que, por obra e omissão, andaram dizendo Torga e Vergílio, é o mesmo que declaram hoje Saramago e Cardoso Pires. Enchem a paisagem, e dizem-se pesarosos de não haver mais paisagem. Nunca citam um autor novo, nunca promovem publicamente um valor mais jovem. Desejaríamos vê-los a fazê-lo, de viseira aberta, sem solidariedades viscosas, aceitando um belo risco. Não, depois deles, vem aí o deserto.

 

Não irei explicar porque é que uma leitura literal e superficial da proposta de Vergílio Ferreira de que o romance estava a acabar não será, talvez, a mais correta nem a que fará mais justiça ao pensamento do autor. Também não explicarei a afirmação citada por Fernando Venâncio de que «“A obra dos outros (…) não me interessa absolutamente nada”», embora se lhe aplique o mesmo considerando (já agora, chamo a atenção para o facto de, para Vergílio Ferreira, um itálico ter um significado muito diferente do de um sublinhado - veja-se, um de entre muitos exemplos, o início e o fim de Aparição).

Não. Vou só referir-me ao alegado silêncio a que Vergílio Ferreira condenou os seus contemporâneos mais novos nas lides do romance. Alegado, porque a afirmação efetivamente não se sustenta em confronto com os factos.

Limitar-me-ei à leitura que Vergílio fez dos novos romancistas portugueses contemporâneos de quem gostou e por quem se interessou, tendo dado disso pública notícia, tanto no diário, como em entrevistas. Procurarei não incluir as referências que fez aos de que não gostou (por exemplo, as muitas que fez a António Lobo Antunes ou a Vasco Pulido Valente, entre outros). Não incluirei aqueles escritores sobre os quais não se pronunciou, mas de que apenas deu notícia de estar a ler.

Da sua geração, começarei por incluir José Saramago, Miguel Torga, Agustina Bessa-Luís, António Alçada Baptista, Carlos de Oliveira, João de Araújo Correia e Manuel Vinhas (não referirei Fernando Namora, ou Jorge de Sena, por exemplo, pois destes sabe-se bem que ele os lia). Depois, passarei à geração seguinte.

Esta não será uma lista exaustiva, já que foram imensas as leituras e referências feitas por Vergílio. Apenas apresentarei alguns exemplos mais significativos que procuram mostrar que aquela afirmação não corresponde de forma alguma à realidade. Ficar-me-ei pelos escritores portugueses (não incluirei sequer outros lusófonos) e apenas pelos romancistas (excluirei, portanto, poetas, dramaturgos, ensaístas e filósofos, todos também objeto de leituras por parte de Vergílio).

 

Começaremos com um comentário que Vergílio Ferreira fez, com a sua habitual perspicácia e fina ironia, a propósito do facto de grandes artistas, contemporâneos entre si, não se “verem” uns aos outros:

 

21 de Agosto de 1973, Conta-Corrente 1, p. 164

21 - Agosto (terça). O diálogo entre os grandes génios. Só é possível se eles são de épocas diferentes. Na mesma época são mutuamente incompreensíveis. Só dizem asneiras uns dos outros. Ou simplesmente desconhecem-se. Joyce diz disparates de Stravinski. Gide de Proust. Eça de Mallarmé. Joyce e Proust não se entenderam e surdamente detestaram-se. Matisse ilustrou o Ulisses. Perguntaram-lhe: «Que tal o livro?» E ele: «Nunca o li.» Absorvidos no seu mundo, não compreendem o dos outros. Mas não nos arrepiam, a nós, pequenos, as muitas asneiras dos grandes. É lá com eles. Como no «entre marido e mulher», entre grandes «ninguém meta a colher». Joyce em Paris: não se deu praticamente com ninguém. E tinha já reputação à escala mundial. Não há diálogo possível entre os deuses de religiões diferentes. Só à espada, como soube Maomé e os nossos portugueses evangelizadores. E os católicos e huguenotes. Somos filhos dos grandes, como dos nossos pais. As questões entre uns e outros decidem-se em nós por um sorriso de simpatia.

 

Já mais esclarecidos sobre esta questão, avancemos um pouco no nosso propósito.

 

A 31 de outubro de 1983, no seu Conta-Corrente 4, p. 421, Vergílio Ferreira fala de si como leitor:

(…) Por mim sou sobretudo leitor e leio tudo o que me passa ao alcance. Certo camarada meu dizia-me há tempos que eu tinha dificuldade em admirar. Não é verdade. Se realmente não gosto, não é possível gostar. Pelo menos por então. Porque muitas vezes não gosto e mais tarde o meu não gostar dá o dito por não dito. Mas habitualmente e facilmente, gosto do que escrevem os outros. E fico sempre admirado de eles serem capazes do que julgo que não sou. Excepto, obviamente, se um livro é grosseiro, lapuz, escrito com os pés. Duas coisas realmente são necessárias para me vergar em reverência: a inteligência e a sensibilidade. Duas coisas, aliás, que andam normalmente juntas. É com isso que se faz o «estilo», o autêntico, não com palavras envernizadas, passadas a pano e polirina, mas que nada adiantam em sensibilidade inteligente. É o que pertence aos que escrevem «bem». (…)

 

Nas próximas postagens, provar-se-á que Vergílio Ferreira leu mesmo.

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