domingo, 14 de março de 2021

Vergílio Ferreira leu (e apreciou publicamente) escritores novos e obras novas - 4

 E agora, duas grandes escritoras que foram também duas suas grandes amigas:

 

Lídia Jorge

28 de Maio de 1980, Conta-Corrente 3, p. 53

28-MAIO (QUARTA). Não, não falei ainda dela, ou já? 0 seu caso ocupou uma larga mancha do acontecer quotidiano, devo ter falado. Ontem esteve aí. É uma rapariga jovem, já com dois filhos e divorciada. Um dia a Regina pediu-me que lesse um romance de uma colega, a ver se tinha qualidade e se publicava. Li meia dúzia de páginas e isso bastou, como de costume, porque a «qualidade» ou a falta dela manifesta-se logo em dois ou três períodos. Era um livro fora do vulgar. Lyon de Castro, da Europa-América, queria o meu aval para se decidir. Tinha acabado de ler todo o livro, disse-lhe que era coisa de tabela alta. Publicou o livro, chama-se 0 Dia dos Prodígios. Escrevi um breve artigo a chamar a atenção e imediatamente começa a ser um «caso». Críticas favoráveis de todo o lado, as esquerdas a tomarem a coisa à sua conta no equívoco costumeiro de haver «povo» no romance, colóquios na rádio e TV - e a primeira edição desapareceu. Ora o livro não tivera o «prémio de revelação» da APE, que fora atribuído a um outro romance, 0 Mesmo e o Outro, de um Luís Martins. Expectativa quanto à maravilha premiada, necessariamente superior ao livro da Lídia Jorge. Ramos Rosa emprestou-me um exemplar, ainda não à venda. Forte decepção. Mas compreendi a razão do equívoco. É um livro que se desenvolve a um nível de temática já adulta. Falhada, todavia, a mão que o manipula. Porque o que se diz é sempre o como se diz. E neste caso a própria sintaxe leva a sua canelada. Lídia Jorge sofreu uma decepção que o êxito não compensou. Lá a compensei eu com uma exposição em forma do que era a obra premiada. Ficou mais em sossego. E agora? Agora é o mistério da sequência de uma obra que acertou. Leio nela a semente de outros livros possíveis e isso dá confiança. Porque há bons livros que em si mesmos são um começo e um fim. Continuar – só para dizer o mesmo. E há livros menos bons que trazem o sinal do que pode abrir em muitas obras futuras. Kafka seria um autor menos feliz, se tem durado 70 anos. É o que acontece com os livros muito marcados pelo processo. Sao autores também quase sem descendência, a menos que abram caminho pelo lado menos visível. Bom. Esteve aí a Lídia Jorge. 0 que a deve salvar é que tem muito a aprender. E tem, para o que aprender, a força orgânica do talento que se não aprende e há-de pôr a ser vivo isso que ainda não sabe.

 

13 de dezembro de 1984, Conta-Corrente 5, p. 288

E afinal ia agora mesmo sê-lo não me referindo ao lançamento de ontem do livro da Lídia Jorge. Foi no Hotel Tivoli. Notícia da Cidade Silvestre é um romance poderoso, intenso, sem constrangimentos de escrita, directo, repleto de coisas no mínimo período ou frase e que trouxe para a nossa literatura uma das suas mais extraordinárias personagens que é a Anabela Cravo. Tem defeitos para o meu gosto e programação dele. Mas em face das virtudes, anotá-los aqui é mesquinhez. Assim fico, pois. E creio que agora estou inteiramente despachado.

 

20 de setembro de 1992, Conta-Corrente – Nova Série IV, p. 187

Lídia Jorge publicou um novo romance A Última Dona. Comecei a lê-lo com muito interesse. Eu dissera-lhe em tempos – o romance que você e os seus amigos praticam já não funciona, é preciso que você «dê o salto». (…)

 

 

Gabriela Llansol


12 de dezembro de 1989, Conta-Corrente – Nova Série I, p. 276

Ontem visitaram-nos a escritora Gabriela Llansol e o marido Augusto, que vivem no Banzão (Praia das Maçãs). Gabriela é uma escritora estranha ou «inclassificável», como diz E. Lourenço (…). Um dia falarei da arte da Gabriela.

 

14 de abril de 1990, Conta-Corrente – Nova Série II, p. 88

14 - Abril (sábado). Ontem esteve aqui a Gabriela Llansol e o Augusto, o marido. (…) Gabriela é uma escritora singular. Fechada no seu mundo sem portas, a gente lê­ a e pressente o seu aviso de «pegar ou largar». Não faz concessões. A dimensão desse seu mundo é o do insólito, do mistério visível, de um impossível possibilitado pela nudez à vista, sem sombras, sem estranheza que se diga estranha, realizada no coração das coisas, mas tangível, sem subenten­didos, imediato, real. Ela exige pois uma óptica que não temos e há que inventar. Gabriela diz-me que vários leitores a lêem com entusiasmo. Sinal de que já têm essa óptica. Por mim, não a tenho ainda afinada. O que sinto e vejo é que o seu mundo é coerente, é pois uno, autêntico, não sustentado por qualquer mistificação. E esse é um sinal seguro da sua qualidade. E de que é profundamen­te original. E de que o alimenta uma segura consciência do que é.

(…) Mas em toda a conversa, pouco me esclareci sobre o seu projecto literário. Suponho mesmo que, fechada nele, pouquíssimo lerá. Pois ler o quê? para quê? Armou a sua tenda no deserto. E os outros escritores moram em casas urbanas. É assim.

 

20 de novembro de 1990, Conta-Corrente – Nova Série II, p. 368

(…) E com este livro, Gabriela ofereceu-me uma plaquetezinha com um texto sobre o seu cão «Jade», ilustrado por Ruth Rosengarthen. Que texto belíssimo. De uma poesia misteriosa que se não sabe donde vem, porque se não separa do real, mas está nele. Há o inesperado e subtil desvio de um percurso possível para um outro inesperado e estranho e incisivo. Gabriela «habita» o mistério, está nele, faz parte dele, mas esse mistério é material, concreto, imediato. Como é um texto muito curto, o leitor segue-a no inesperado e insólito do seu percurso sem fatigar a atenção. É assim um texto que favorece a iniciação à leitura desta autora estranhíssima ao nosso hábito do possível. Tem o título muito belo de «Amar Um Cão». Li-o duas vezes. Aguenta perfeitamente uma terceira.

 

8 de janeiro de 1991, Conta-Corrente – Nova Série III, p. 17

(…) Gabriela é uma escritora muito sui generis, a mais distanciada da comunidade das letras. Os seus livros não têm uma «história» mas nem sequer pequenas «histórias» ou fixação de referências que nos permitam saber onde estamos. Praticou a mistura das épocas, chamando à escrita figuras que viveram em séculos diferentes (São João da Cruz, Münster, Nietzsche, etc.). E a sua arte consiste em dar-nos observações muito originais, não propriamente reflexões, interpretações ou imagens, metáforas, mas uma certa natureza das coisas dada em cru, sem concessões, o que torna a sua leitura rebarbativa por não suster a atenção do leitor que naturalmente se transvia em anotações dispersas, pontilhistas, sem emoção. Não há assim surpresas de inteligência, ou afectivas, há só um espraiar por espaços pedregosos e normalmente fechados, estreitos, mesmo quando abrem janelas para fora. Mas uma leitura lenta, como a que é de exigir, se não desistirmos de ler por ser isso trabalhoso, revela-nos um espírito muito original e uma atenção muito viva. Gabriela pratica o que apetece chamar uma espiritualidade material. Porque ama o espírito ou a essência das coisas, mas descobre-as na materialidade delas, na dureza delas, no seu lado ósseo. Este último livro - Um Beijo Dado Mais Tarde - parece-me o seu melhor até hoje. Porque se atenua o seu lado cru na evocação da infância, numa corrente de afectividade que fala um pouco à nossa emoção, numa fixação mais demorada em pessoas e coisas (destaco o VI Capítulo). Os títulos são também sempre inesperados, estranhos, desconexos da nossa harmonização para receber títulos, mesmo os originais, porque são títulos duros, crus, inesperados e desabitados de emotividade (e naturalmente de vulgaridade). Há uma maneira de se ser original que encaixa todavia no mol­de da nossa receptividade. A originalidade de Gabriela não se ajusta aos nossos moldes, há pois que bater-lhe um pouco para entrar. Em todo o caso, ou porque tenho já alguma habituação ou porque me reconheço em certo vocabulário deste livro («enigma», «para o lado da vida eterna», etc.), li quase de jacto este livro sem ter de o triturar nestes meus dentes, já pouco enérgicos para atacar matérias duras.

 

 

Em suma, Vergílio Ferreira não lê novos romancistas seus contemporâneos?

Pelo contrário, como se mostrou aqui, não só ele lê imenso, como às vezes até se deixa arrastar por um entusiasmo que é quase infantil na sua expressão. Mas que não deixa, no entanto, de ser lúcido: veja-se como as suas previsões acerca de Lídia Jorge, Gabriela Llansol, Mário Cláudio, Teolinda Gersão ou Mário de Carvalho se cumpriram plenamente.

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