E agora, duas grandes escritoras que foram também duas suas grandes amigas:
Lídia Jorge
28 de Maio de 1980, Conta-Corrente
3, p. 53
28-MAIO (QUARTA). Não, não falei
ainda dela, ou já? 0 seu caso ocupou uma larga mancha do acontecer quotidiano,
devo ter falado. Ontem esteve aí. É uma rapariga jovem, já com dois filhos e
divorciada. Um dia a Regina pediu-me que lesse um romance de uma colega, a ver
se tinha qualidade e se publicava. Li meia dúzia de páginas e isso bastou, como
de costume, porque a «qualidade» ou a falta dela manifesta-se logo em dois ou
três períodos. Era um livro fora do vulgar. Lyon de Castro, da Europa-América,
queria o meu aval para se decidir. Tinha acabado de ler todo o livro, disse-lhe
que era coisa de tabela alta. Publicou o livro, chama-se 0 Dia dos
Prodígios. Escrevi um breve artigo a chamar a atenção e imediatamente começa
a ser um «caso». Críticas favoráveis de todo o lado, as esquerdas a tomarem a
coisa à sua conta no equívoco costumeiro de haver «povo» no romance, colóquios
na rádio e TV - e a primeira edição desapareceu. Ora o livro não tivera o «prémio
de revelação» da APE, que fora atribuído a um outro romance, 0 Mesmo e o
Outro, de um Luís Martins. Expectativa quanto à maravilha premiada,
necessariamente superior ao livro da Lídia Jorge. Ramos Rosa emprestou-me um
exemplar, ainda não à venda. Forte decepção. Mas compreendi a razão do equívoco.
É um livro que se desenvolve a um nível de temática já adulta. Falhada,
todavia, a mão que o manipula. Porque o que se diz é sempre o como se diz. E
neste caso a própria sintaxe leva a sua canelada. Lídia Jorge sofreu uma decepção
que o êxito não compensou. Lá a compensei eu com uma exposição em forma do que
era a obra premiada. Ficou mais em sossego. E agora? Agora é o mistério da sequência
de uma obra que acertou. Leio nela a semente de outros livros possíveis e isso
dá confiança. Porque há bons livros que em si mesmos são um começo e um fim.
Continuar – só para dizer o mesmo. E há livros menos bons que trazem o sinal do
que pode abrir em muitas obras futuras. Kafka seria um autor menos feliz, se tem
durado 70 anos. É o que acontece com os livros muito marcados pelo processo.
Sao autores também quase sem descendência, a menos que abram caminho pelo lado
menos visível. Bom. Esteve aí a Lídia Jorge. 0 que a deve salvar é que tem
muito a aprender. E tem, para o que aprender, a força orgânica do talento que
se não aprende e há-de pôr a ser vivo isso que ainda não sabe.
13 de dezembro de 1984, Conta-Corrente
5, p. 288
E afinal ia agora mesmo sê-lo
não me referindo ao lançamento de ontem do livro da Lídia Jorge. Foi no Hotel
Tivoli. Notícia da Cidade Silvestre é um romance poderoso, intenso, sem
constrangimentos de escrita, directo, repleto de coisas no mínimo período ou
frase e que trouxe para a nossa literatura uma das suas mais extraordinárias
personagens que é a Anabela Cravo. Tem defeitos para o meu gosto e programação
dele. Mas em face das virtudes, anotá-los aqui é mesquinhez. Assim fico, pois.
E creio que agora estou inteiramente despachado.
20 de setembro de 1992, Conta-Corrente
– Nova Série IV, p. 187
Lídia Jorge publicou um novo
romance A Última Dona. Comecei a lê-lo com muito interesse. Eu dissera-lhe em
tempos – o romance que você e os seus amigos praticam já não funciona, é
preciso que você «dê o salto». (…)
Gabriela Llansol
12 de dezembro de 1989, Conta-Corrente – Nova Série I, p. 276
Ontem visitaram-nos a escritora
Gabriela Llansol e o marido Augusto, que vivem no Banzão (Praia das Maçãs).
Gabriela é uma escritora estranha ou «inclassificável», como diz E.
Lourenço (…). Um dia falarei da arte da Gabriela.
14 de abril de 1990, Conta-Corrente
– Nova Série II, p. 88
14 - Abril (sábado). Ontem
esteve aqui a Gabriela Llansol e o Augusto, o marido. (…) Gabriela é uma
escritora singular. Fechada no seu mundo sem portas, a gente lê a e pressente
o seu aviso de «pegar ou largar». Não faz concessões. A dimensão desse seu
mundo é o do insólito, do mistério visível, de um impossível possibilitado pela
nudez à vista, sem sombras, sem estranheza que se diga estranha, realizada no
coração das coisas, mas tangível, sem subentendidos, imediato, real.
Ela exige pois uma óptica que não temos e há que inventar. Gabriela diz-me que
vários leitores a lêem com entusiasmo. Sinal de que já têm essa óptica. Por
mim, não a tenho ainda afinada. O que sinto e vejo é que o seu mundo é coerente,
é pois uno, autêntico, não sustentado por qualquer mistificação. E esse é um
sinal seguro da sua qualidade. E de que é profundamente original. E de que o
alimenta uma segura consciência do que é.
(…) Mas em toda a conversa,
pouco me esclareci sobre o seu projecto literário. Suponho mesmo que, fechada
nele, pouquíssimo lerá. Pois ler o quê? para quê? Armou a sua tenda no deserto.
E os outros escritores moram em casas urbanas. É assim.
20 de
novembro de 1990, Conta-Corrente – Nova Série II, p. 368
(…) E com este livro, Gabriela
ofereceu-me uma plaquetezinha com um texto sobre o seu cão «Jade», ilustrado
por Ruth Rosengarthen. Que texto belíssimo. De uma poesia misteriosa que se não
sabe donde vem, porque se não separa do real, mas está nele. Há o inesperado e
subtil desvio de um percurso possível para um outro inesperado e estranho e
incisivo. Gabriela «habita» o mistério, está nele, faz parte dele, mas esse
mistério é material, concreto, imediato. Como é um texto muito curto, o leitor
segue-a no inesperado e insólito do seu percurso sem fatigar a atenção. É assim
um texto que favorece a iniciação à leitura desta autora estranhíssima ao nosso
hábito do possível. Tem o título muito belo de «Amar Um Cão». Li-o duas vezes.
Aguenta perfeitamente uma terceira.
8 de janeiro de 1991, Conta-Corrente
– Nova Série III, p. 17
(…) Gabriela é uma escritora
muito sui generis, a mais distanciada da comunidade das letras. Os seus
livros não têm uma «história» mas nem sequer pequenas «histórias» ou fixação de
referências que nos permitam saber onde estamos. Praticou a mistura das
épocas, chamando à escrita figuras que viveram em séculos diferentes (São João
da Cruz, Münster, Nietzsche, etc.). E a sua arte consiste em dar-nos
observações muito originais, não propriamente reflexões, interpretações ou
imagens, metáforas, mas uma certa natureza das coisas dada em cru, sem
concessões, o que torna a sua leitura rebarbativa por não suster a atenção do
leitor que naturalmente se transvia em anotações dispersas, pontilhistas, sem
emoção. Não há assim surpresas de inteligência, ou afectivas, há só um espraiar
por espaços pedregosos e normalmente fechados, estreitos, mesmo quando abrem
janelas para fora. Mas uma leitura lenta, como a que é de exigir, se não
desistirmos de ler por ser isso trabalhoso, revela-nos um espírito muito
original e uma atenção muito viva. Gabriela pratica o que apetece chamar uma espiritualidade
material. Porque ama o espírito ou a essência das coisas, mas descobre-as na
materialidade delas, na dureza delas, no seu lado ósseo. Este último livro - Um
Beijo Dado Mais Tarde - parece-me o seu melhor até hoje. Porque se atenua o
seu lado cru na evocação da infância, numa corrente de afectividade que fala um
pouco à nossa emoção, numa fixação mais demorada em pessoas e coisas (destaco o
VI Capítulo). Os títulos são também sempre inesperados, estranhos, desconexos
da nossa harmonização para receber títulos, mesmo os originais, porque são
títulos duros, crus, inesperados e desabitados de emotividade (e naturalmente
de vulgaridade). Há uma maneira de se ser original que encaixa todavia no molde da nossa receptividade. A originalidade de Gabriela não se ajusta aos nossos
moldes, há pois que bater-lhe um pouco para entrar. Em todo o caso, ou porque
tenho já alguma habituação ou porque me reconheço em certo vocabulário deste
livro («enigma», «para o lado da vida eterna», etc.), li quase de jacto este
livro sem ter de o triturar nestes meus dentes, já pouco enérgicos para atacar
matérias duras.
Em suma, Vergílio Ferreira não lê novos romancistas seus contemporâneos?
Pelo contrário, como se mostrou aqui, não só ele lê imenso, como às vezes até se deixa arrastar por um entusiasmo que é quase infantil na sua expressão. Mas que não deixa, no entanto, de ser lúcido: veja-se como as suas previsões acerca de Lídia Jorge, Gabriela Llansol, Mário Cláudio, Teolinda Gersão ou Mário de Carvalho se cumpriram plenamente.
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