domingo, 14 de março de 2021

Vergílio Ferreira leu (e apreciou publicamente) escritores novos e obras novas - 2

 Comecemos por alguns escritores da sua geração. E o primeiro, claro, é:

 

José Saramago

1 de Agosto de 1990, Conta-Corrente - Nova Série II, p. 206

(…) Dá-se o caso, aliás, de eu admirar o Saramago por razões que não terão talvez que ver com a sua popularidade. O que me levaria tempo a explicar. (…)

 

24 de julho de 1991, Conta-Corrente – Nova Série III, p. 160

A propósito do Nobel, já agora, o E. Lisboa dá como dada ou provável a entronização do Saramago. Também o creio. Tem currículo, já fez a tarimba de ser badalado no sinédrio, é um «escritor universal», teve ópera sobre um livro, tem qualidade q.b. (…) Porque a grande pugna é entre os dois [José Saramago e António Ramos Rosa].

 

3 de maio de 1992, Conta-Corrente – Nova Série IV, p. 80

Estou a ler o livro alvejado pelo senhor político. Saramago é hábil na condução da história. (…)

 

5 de maio de 1992, Conta-Corrente – Nova Série IV, p. 85

(...) Entretanto ainda vou lendo três livros – o do Saramago, um da Kristeva e Os Infiéis do Dacosta. (...)

 

7 de maio de 1992, Conta-Corrente – Nova Série IV, p. 87

(…) um desses três, que é o Evangelho segundo Saramago, me está a agradar. Porquê? Creio que é por ele manter na sua lengalenga um certo sabor de coloquialidade de velhas histórias contadas à lareira. (...)

Nota: Saramago confirma esta leitura de Vergílio Ferreira, no seu Diário II, a 15 de fevereiro de 1994:

Regresso a um tema recorrente. Todas as características da minha técnica narrativa actual (eu preferiria dizer: do meu estilo) provêm de um princípio básico segundo o qual todo o dito se destina a ser ouvido. Quero com isto significar que é como narrador oral que me vejo quando escrevo e que as palavras são por mim escritas tanto para serem lidas como para serem ouvidas. Ora, o narrador oral não usa pontuação, fala como se estivesse a compor música e usa os mesmos elementos que o músico: sons e pausas, altos e baixos, uns, breves ou longas, outras. Certas tendências, que reconheço e confirmo (estruturas barrocas, oratória circular, simetria de elementos), suponho que me vêm de uma certa ideia de um discurso oral tomado como música. (...)


20 de maio de 1992, Conta-Corrente – Nova Série IV, p. 101

(…) Evangelho, que não considero de modo algum um livro medíocre. (…) que tem sem dúvida a sua qualidade.

 

Note-se agora o que José Saramago diz a 10 de Outubro de 1994 (Cadernos de Lanzarote - Diário II), tendo em atenção que Conta-Corrente - Nova Série IV tinha acabado de ser publicado dois meses antes, em Agosto do mesmo ano:

Mas os escritores, ah, os escritores, com que gozo apontam eles ao desfrute do gentio a simples palha que lastima o olho do colega, com que descaro fingem não ver nem perceber a trave que têm atravessada no próprio olho. Vergílio Ferreira, por exemplo, é um mestre neste tipo de execuções sumárias. Que se saiba, ninguém lhas pediu, mas ele continua a emitir sentenças de exclusão perpétua, sem outro código penal que o seu próprio e incomensurável orgulho sempre arranhado. Dizem-me que se decidiu finalmente a falar de mim na Conta-Corrente, mas não fui lá a correr ler, nem sequer devagar tenciono ir. A diferença entre nós é conhecida: eu não saberia escrever os seus livros e ele não quereria escrever os meus...

Quatro breves reflexões.

Primeira reflexão - A injustiça (a primeira referência a Saramago não é de 1992, mas pelo menos de 1990, como se mostrou atrás) deste "julgamento" de Saramago (que, aliás, nunca é simpático para Vergílio nos seus Cadernos) sobre alguém que até o defendeu publicamente várias vezes (embora, de vez em quando, um tanto ambiguamente), aqui por exemplo:

12 de maio de 1992, Conta-Corrente – Nova Série IV, p. 93

E eu disse:

- Não me fales dessa vergonha do censor que eliminou o Evangelho.

- O quê? tu também és da corda?

- Naturalmente, sou da corda porque foi uma atitude indecente.

- Diz lá ao teu amigo Saramago.

- Sou amigo de relações formais, mas neste caso não se trata de amizade, mas de senso e justiça.


Segunda reflexão - Poderá haver, apesar de tudo, um elogio implícito a Vergílio na afirmação final de Saramago? Que talvez possa ser clarificado deste modo: Saramago reconhece que «não saberia escrever» os livros de Vergílio, mas que este, se quisesse (mas não quer), poderia escrever os livros de Saramago. Bom, Isabel Cristina Rodrigues, professora na universidade de Aveiro, num artigo muito interessante e provocador, põe uma hipótese de interpretação mais prudente:

«Ora, quereria Saramago escrever os livros de Vergílio, se de facto soubesse fazê-lo? Saberia Vergílio escrever os de Saramago, mesmo que nessa tarefa investisse a força da vontade? São questões irrespondíveis estas, não só porque querer não é necessariamente saber (sendo que qualquer saber corresponde a uma verdade individual que recolhe da experiência intransmissível do sujeito muito do seu investimento mundividencial), mas ainda porque, no aparente dissídio das suas obras, os dois autores acabam por encontrar-se de um modo mais profundo do que por ação de um eventual (e deveras excêntrico) travestimento da respetiva identidade literária.» (Isabel Cristina Rodrigues (2018). Vergílio Ferreira e José Saramago: Ensaio sobre o humano. Metamorfoses - Revista de Estudos Literários Luso Afro-Brasileiros da Cátedra Jorge de Sena da Faculdade de Letras da UFRJ, v. 15, n. 1, 15-33)


Terceira reflexão - Quem seria o ou a intriguista («Dizem-me...») que andou a envenenar Saramago? Tem de ser alguém de sua grande confiança, de tal modo que Saramago (que sabia bem o que era ser jornalista) nem se dá ao trabalho de ir verificar com os seus próprios olhos se é verdade. E não é bem verdade, como se pode comprovar em toda esta postagem.


Quarta reflexão - O que Saramago diz dos escritores no início da citação que atrás se apresenta é bastante verdadeiro, pelo menos era-o naquela altura. Infelizmente, com entradas destas nos seus Cadernos, José Saramago acaba por constituir uma amostra exemplar daquilo que ele mesmo aqui critica.


 

Agustina Bessa-Luís


21 de dezembro de 1976, Conta-Corrente 1, p. 386

Ando a ler a Crónica do Cruzado Osb. Não a latina de Osberno, mas o romance da Bessa-Luís. É até hoje o único romance sobre a revolução do 25 de Abril. Por isso mo recomendaram, por isso o leio. Bessa-Luís tem a característica de ser sempre igual e de assim nos não surpreender. (…)

 

29 de abril de 1979, Conta-Corrente 2, p. 259

Lido um livro da Bessa-Luís sobre Florbela. Não desgostei. (…)

 

28 de dezembro de 1981, Conta-Corrente 3, p. 449

(…) Recentemente fez furor uma observação de Bessa-Luís no seu Fanny Owen, aliás um bom livro, (…)

 

 

Miguel Torga


9 de setembro de 1976, Conta-Corrente 1, p. 358

(…) Torga é um bom poeta e um prosador menos bom. sobretudo irrita-me o ficcionista do «pega-lhe com um trapo quente» (…) Da ficção exceptuo os Bichos (…) Mas é um bom poeta porque sabe surpreender, numa linguagem sã, o significado simples e oculto – e inesperado – de uma situação humana em que o homem recusa a sua fragilidade, enfrenta o destino com uma certa dignidade. (…)

Além disso, Vergílio Ferreira admira Torga como homem «exemplar» – 27 de dezembro de 1978, Conta-Corrente 2, p. 234.

 

1 de agosto de 1990, Conta-Corrente – Nova Série II, p. 206

Já o Torga é outra coisa. Eu até gosto suficientemente de alguns dos seus versos, de alguma da sua ficção e de algum do seu diário.

 

6 de outubro de 1990, Conta-Corrente – Nova Série II, p.317

É necessário esclarecer que não tenho nada contra o Torga, que me vão mesmo ao paladar certos versos e certas prosas. (…)

 

 

António Alçada Baptista


5 de fevereiro de 1972, Conta-Corrente 1, p. 108

A leitura das Reflexões sobre Deus, de Alçada Baptista. (…) Gostei? Bastante. (…) De qualquer modo – um livro raro e muito agradável.

 

24 de dezembro de 1985, Conta-Corrente 5, p. 569

Li há dias um romance muito bom e esqueci-me de o anotar. Chama-se Os Nós e os Laços e é do António Alçada Baptista. Bom porquê? Por várias razões como acontece sempre com um livro bom. Acima de tudo gostei dele porque me fez pensar mais do que simplesmente ver, sendo que o que há aí de pensamento não se refere apenas à mente mas ao sistema nervoso. E isto é muito raro na literatura portuguesa. Em segundo lugar gostei da centralização do livro na sublimação do destino do corpo. Gostei ainda da imagem fiel que me dá de uma época e sobretudo de um certo meio. Gostei da escrita oral, mesmo bem cavaqueada. Gostei de certas personagens pela sua humanidade como Gonçalo e Teresa. Gostei da significação humana do projecto de romance que aquele nos expõe sobre Santa Maria Egipcíaca. Gostei muito dos diálogos que relembram a sua matriz platónica. Gostei menos da excessiva acentuação ensaística.

 

 

Carlos de Oliveira


3 de julho de 1981, Conta-Corrente 3, p. 368

(…) girava noutra órbita. Mas, cá de longe, lá lhe ia seguindo a trajectória. Ele foi um bom poeta, foi um menos bom romancista. (…)



João de Araújo Correia


7 de março de 1981, Conta-Corrente 3, p. 269

(...) Não discuto a qualidade do Araújo Correia, que até é um bom escritor. (...)



Manuel Vinhas


18 de outubro de 1976, Conta-Corrente 1, p. 368

Lido um livro, Profissão Exilado, do Manuel Vinhas. Livro bem escrito, sim, senhor. (…)

 

 


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