sexta-feira, 9 de abril de 2021

Aparição - Capítulo 5

 

5.

E todas as quartas e sábados eu dava lição a Sofia.


(47)

Começámos pelo princípio para recapitular. Ela cantava as declinações, tinha um modo gracioso de se enganar e de tal forma que eu sentia obscuramente que os erros é que estavam certos. E era assim como se qualquer coisa a habitasse e fosse maior do que ela e do que a miséria das regras de gramática. Mas tinha sobretudo uma maneira brusca e cravada de travar e de me ficar olhando, como se me procurasse em qualquer sítio de mim onde não houvesse lembrança do que estávamos dizendo.

Como toda esta geração que cresceu sem amizades femininas, assistimos aqui mais um exemplo de mitificação da mulher - devo dizer que, se calhar erradamente, considero esta uma das formas mais belas e poéticas de sexismo benévolo... porque, apesar de muito matizado, é um sexismo benévolo que aquele excerto do romance revela. Senão, vejamos:

«Estes sentimentos "positivos" caracterizam as concepções sexistas benévolas, que se expressam através de atitudes de admiração e proteção e, na maioria das vezes, não são consideradas como uma forma de discriminação contra a mulher.» (Raquel Pereira Belo; Valdiney V. Gouveia; Jorge da Silva Raymundo; Célia Maria Cruz Marques (2005). Correlatos valorativos do sexismo ambivalente. Psicol. Reflex. Crit. vol.18 no.1 Porto Alegre Jan./Apr. 2005)

Tal como Vergílio Ferreira, passei por isto e, ainda hoje, não consigo deixar de, ao nível emocional, mergulhar nesta mitificação. Depois, o meu cérebro racional (auxiliado pela memória de muitas desilusões) vem abrir-me os olhos para eu não levar a sério esta fantasia.

Passei por isto, mas não só, também pela reação suplementar a esta que Vergílio Ferreira descreve aqui magistralmente:

(48)

(...) E eu sentia que tudo o que é vivo na terra estava ali presente no seu corpo. Que tinha que fazer, frente à execução da alegria, o meu pobre ministério de cadáver? Assim um íntimo desastre me tolhia e  envelhecia as palavras. (...)

O que é interessante é que Vergílio Ferreira de alguma forma a seguir desmente aquele sexismo através de uma afirmação de rebeldia de Sofia, com a qual empatizamos de imediato:

- Porque há-de a vida ter razão sobre nós? Porque havemos de ser sempre nós a submeter-nos? Um curso e um marido e filhos...

Ou seja, rebeldia contra a vida convencional, convencionalmente correta...


(52)

Em certo serão de Inverno, Sofia, Ana quebrou-te, creio que por descuido, um braço a uma boneca. Tu foste para o quarto, grave, sem uma lágrima. E de um a um quebraste todos os teus brinquedos, impedindo violentamente que te levassem os cacos: melhor que a náusea das compensações medianas, preferias o absoluto da destruição.

Senti um ataque brutal a todas as minhas vísceras e vi como era compreensível o sonho de Sofia. Realizar a vida num acto, num gesto, num sonho, por mais miserável que seja.

Sim, há aqui uma grandeza, um absoluto que atrai, que se admira. O que me interrogo, porém, é se se se ama uma pessoa assim. Dificilmente. E por isso, sem amor, esta pessoa encaminha-se irresistivelmente para o desastre.

Aliás, Vergílio Ferreira, mais à frente, faz uma correção, pequena, mas que se traduz num mundo de diferença:

(53)

«Reunir a vida num acto, num sonho. Mas ter primeiro a evidência da sua grandeza, da sua verdade. E ter a evidência daquilo que ele recusa.»

Este «Mas» tem toda a importância porque pode contribuir para afastar qualquer tendência mais destruidora, seja auto-, seja hetero-.


(53/4/5)

Um dos episódios mais marcantes deste livro, o encontro com o semeador Bailote. O problema da velhice (quem disse que, antigamente, os velhos eram respeitados?), do valor da utilidade para o que importa na vida, da objetificação do ser humano por parte de patrões.


- O homem enforcou-se.


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