quinta-feira, 17 de junho de 2021

Aparição - Capítulo 10

 

10.

Trabalho no Liceu com entusiasmo - o entusiasmo do principiante, ou seja, do que ainda está criando. (...)


(108)

(...) Mas eu sabia, eu, que não tenho um Deus que me justifique e redima, eu, que, luto há tanto tempo por reconduzir à dimensão humana tudo quanto traz ainda um rasto divino, eu, que desejo reabsorver isso na minha condição mortal e efémera de um pobre arranjo de água e barro, eu, que nada recuso à minha emoção e ao meu alarme de tudo quanto me alarma ou me comove, eu, que sou materialista mas não só de um materialismo que se mede a metro e pesa na balança, eu, que conto com o reinado integral do homem na terra da sua condenação e grandeza, assumindo tudo quanto se anuncia em mistério e exaltação, (...)

Belíssimo programa de uma vida mais elevada (para além das misérias do dia-a-dia que nos arrastam para baixo), plena e una na sua multiplicidade.

Relativamente a «não tenho um Deus que me justifique e redima». Todos procuramos estas duas coisas, a justificação e a redenção. Deus ajudava a consegui-lo. Agora, que Deus morreu, é mais difícil. Justificação ainda vamos encontrando noutras paragens. No meu caso pessoal, nas Neurociências, na Psicologia Evolucionista e na Psicologia do Trauma.

Porém, a possibilidade de redenção desapareceu juntamente com Deus, pelo menos, para mim. Não existe redenção, só posso esperar encontrar algum alívio nesta situação de condenado sem esperança e de ausência de inocência, na prática da bondade, da generosidade e da compaixão com o mundo. Às vezes, lembrando-me de me sentir agradecido por poder fazê-lo.


(109)

(...) Falei aos moços de Proust, do tempo reencontrado nas lembranças, do halo que se ergue de um sabor que se conheceu na infância, das pervincas azuis de Rousseau, reencontradas mais tarde com a memória de outrora. Mas a minha memória não era bem essa. A minha memória não tinha apenas factos referenciáveis, não exigia a sua recuperação para que o halo se abrisse. A minha memória não era memória de nada. Uma música que se ouve pela primeira vez, um raio de sol que atravessa a vidraça, uma vaga de luar de cada noite podiam abrir lá longe, na dimensão absoluta, o eco dessa memória, que ia para além da vida, ressoava pelos espaços desertos, desde antes de eu nascer até quando eu nada fosse há muito tempo para lá da morte. Visão de uma alegria sem risos, de uma plenitude tranquila, ela falava de um tempo imemorial como as vozes oblíquas da noite e do presságio. A presença imediata esvaziava-se e o que ficava pairando era um tecido de bruma e de nada, canção sem fim, harmonia ignota de paragens sem nome. (...)

Um trecho maravilhoso sobre a memória. A memória de origens, da nostalgia do nunca, fazendo emergir emoções que tanto vêm do passado como do futuro, ambos talvez sonhados.

Ainda hoje de manhã, aqui em Olhão, um céu de neblina, um cheiro húmido e fresco a maresia, a fazerem nascer em mim a memória antiga da casa da Figueira da Foz, fria e sombria, acolchoada de madeiras, habitada por um desespero tranquilo não isento de uma esperança obscura.


(110)

(...) um homem que se interroga, se procura no absoluto de uma plenitude que é o seu sonho de entre pedras e cardos. (...)

Porque, para nos aproximarmos da plenitude sonhada, nunca podemos parar de interrogar o mundo e nós próprios. Interrogar não no sentido de fazer perguntas analíticas, mas no de buscar tudo o que não é imediatamente evidente, tudo o que não se pode encontrar na superfície das coisas, tudo o que é mais do domínio da emoção original do que do pensamento (ainda que holístico).


(111)

(...) Eu, porém, não sabia se o entendia bem, porque era possível que eu entendesse nele só o que sabia de mim. (...)

O germe de um anúncio de Estrela Polar? À parte desta lembrança minha, suspeito que é sempre isto que fazemos. Acabei de ler Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf, e ela ilustra bem este processo. Mais, além disso, nós por vezes também entendemos nos outros o que que estamos à espera de lá encontrar, normalmente a partir dos nossos preconceitos e ideias feitas - ou seja, a partir do que eu não sei de mim, mas que indubitavelmente pertence a mim.


(111)

(...) a sua curiosa destruição da linguagem:

Retomando o tema de (67).


(...) A galinha tombou num baque surdo e lá ficou, toda enovelada de penas, uma asa ainda semiaberta, cobrindo-lhe quase as patas estendidas.


sábado, 12 de junho de 2021

Aparição - Capítulo 9

 

9.

E a vida recomeçou. (...)


(83)

(...) Fixar uma vida em torno de uma ideia, de um sentimento, como é difícil! À unidade que nos pré-existe a cada um, à unidade de sermos, a vida imediata, quotidiana, é uma selva de caminhos, de veredas, de confusa vegetação. Tão fácil perdermo-nos! O mais grave, porém, é que na sua rede muitas vezes não sentimos que nos perdemos. Cada caminho impõe-se-nos na sua presença imediata. Um caminho é «o» caminho em cada instante que passa. (...)

E isto é tão verdade, desde as coisas mais prosaicas (como atermo-nos a um projeto de trabalho que nos apaixona) até às mais metafísicas (como descobrirmos o que de diferente e bom nos acontece momento a momento). Distraímo-nos, pensando que não e só a posteriori é que damos conta do engano e da perda de tempo.

Vergílio alerta-nos para o que pode correr menos bem quando se trata dos caminhos que podemos encontrar (ou desencontrar) no sentido de alcançar uma maior consciência e aí permanecer. Como se se tratasse de uma espécie de guia de auto-orientação ou de um mapa para um viajante metafísico.


(86)

(...) Mas o curso não era para entreter, era para lhe firmar uma... uma consciência. Sem dúvida, num curso pouco se aprende. Mas dá-nos pontos de referência, talvez nos dê uma certa forma de responsabilidade.

Boa questão: para que serve um curso? A 16 de Agosto de 1971, Vergílio diz no seu Conta-Corrente 1 (p. 93) que «A educação traça um horizonte de possíveis ao possível que se é.» Concordo em absoluto, desde que a área de conhecimento que estamos a "desbravar" esteja alinhada com os nosso interesses e afetos, caso contrário o curso servirá para muito pouco.

Em mim, veja-se a diferença entre o que a Engenharia Civil e a Psicologia contribuíram para me enriquecer como pessoa. Basta dizer que tenho o curso de Engenharia, mas não "sou" engenheiro; enquanto que, no que se refere à Psicologia, eu integrei-a na minha vida do dia-a-dia, na forma como me relaciono com os outros e naquilo que sou (ironicamente, apesar de nunca ter chegado a ser oficialmente um Psicólogo).

Portanto, um curso pode ser uma oportunidade excecional para crescermos como pessoas. Porque, quanto a aprender, aprende-se, não bem pouco, mas muita coisa "ao lado" do que nos é verdadeiro. Para mim, a outra grande vantagem do curso de Psicologia (o de Engenharia nem para isso serviu) foi dar-me meios de aprender por mim próprio sobre tudo aquilo que posteriormente me veio a suscitar a minha curiosidade, ensinando-me a distinguir o que não presta daquilo que é fiável.


(87)

(...) Mas eu não te ensinei nada! Ninguém nos ensina nada, talvez, minha amiga. Só se consegue aprender o que nos não interessa. Porque o mais, o que é do nosso fundo destino, somo-lo: se alguém no-lo ensinou, não demos conta disso. Ensinar então é só confirmar.

Uma afirmação polémica de Vergílio, daquelas que eu gosto porque "acorda" a nossa curiosidade habitualmente cansada e, assim, promove descobertas imprevistas. Claro que aqui ele mistura dois níveis de forma provocadora: o pessoal e o académico. Eles estão habitualmente separados, mas houve momentos do curso em que eles se tocaram e se chegaram a interrelacionar-se: por exemplo, nas disciplinas de Psicanálise ou de Epistemologia das Ciências. A sensação que eu tive é que eram peças que se encaixavam perfeitamente no puzzle (incompleto!) que era o meu «eu» - uma espécie de confirmação, acho eu.

A última frase também é muito interessante. Quando saímos da posição de aprendente para a de ensinante, algo continua como se elas fossem dois pólos da mesmíssima coisa. Portanto, quando ensino, ou melhor, quando preparo as aulas e quando os alunos questionam o que eu digo, lá volta a sensação de um puzzle a completar-se. Aqui, sim, a confirmação do que sou, e do que defendo a partir do que sou (não apenas do que conheço).


(89)

(...) Depois fui político. Ser avançado era bom e verdadeiro como ter força e ser novo. Depois deixei de ser novo e de fazer barulho. E, quando não houve barulho, ouvi vozes obscuras, submersas a esse mesmo barulho. Depois a vida não teve significado, porque me estava sem emprego. Bom: então, deste grau zero, descobri que estava vivo, que existia, e era eu. E agora tento salvar essa extraordinária descoberta, pô-la a funcionar com o universo e a morte. Voilà.

Autobiografia política do próprio Vergílio? Bem provável.


(95)

(...)

- Tenho de ir indo.

- Já dei ordens para o jantar. Não seja cobarde e desmancha-prazeres.

Uma fúria de cães mastigou-me os nervos. Seria havia pecado que pudesse vexar-me, era esse da cobardia. (...) Não entendiam que assumir a miséria do homem, enfrentar o que humilhava a sua condição era um sinal de coragem mais profunda.

- Não sei o que pretende de mim - disse eu. - Mas sei que não sou cobarde.

- Então sente-se - respondeu, enquanto abria a mesa.

Vergílio disse anos mais tarde que faltava às personagens de Aparição uma grandeza que estava presente em Cântico Final. Sim, Alberto é um anti-herói, talvez não cobarde, mas em que a voz da submissão está muito presente. Veja-se este episódio em que Ana o coloca numa "no-win situation": se ele sair, é porque foge em cobardia; se ele ficar, é porque obedece... em cobardia, novamente. Como sair desta situação?

Uma via poderia ser expondo o jogo desonesto de Ana, rindo-se dos seus ardis e acabando a fazer o que realmente lhe apetecia - ir-se embora (porque ele não desejava a companhia de Ana, que tinha acabado de o insultar, nem certamente a de Alfredo ou de Chico). Mas ele fica. Submissamente.


(98 e 99)

(...) Chico (...) Irra, falemos claro: que pretende você?

(...)

(...) Adequar a vida (que é um pleno de ser, um absoluto, uma positividade necessária) com a morte (que é uma nulidade integral, uma pura ausência, um nada-nada).

- Sou materialista! - disse eu.

(...)

- É exactamente porque sou materialista que esse mundo me intriga. Se tivesse deuses para lhes recambiar estes seus bens não me interrogava duas vezes. Interrogo-me, porque a morte é um muro sem portas.

Extraordinária definição de morte. E tão simples: «um muro sem portas.»


(...) A casa no Alto.


Aparição - Capítulo 10

  10. Trabalho no Liceu com entusiasmo - o entusiasmo do principiante, ou seja, do que ainda está criando. (...) (108) (...) Mas eu sabia, e...