6.
Senti-me embrutecido, atordoado em todo o corpo.
(57)
(...) Que fazemos nós na vida? Que incrível pertinácia nos resolve numa ilusão toda a imensidade do milagre de estar vivo? Não vale então nada, meu velho desconhecido, esse prodígio de seres, em face de uma mão que não é já a de um semeador?
Ou seja, haverá alguma razão que seja mais forte do que o fantástico de estar vivo? Algumas haverão, certamente, claro. Mas serão só essas que estão por detrás dos atuais números elevadíssimos de suicídios?
O dr. Moura não se apercebeu dos sinais dados pelo trabalhador Bailote. Esta é a também a tragédia de todos quantos convivem com as pessoas que, depois, se suicidam. Como evitá-la? Primeiro, nunca menorizar intenções verbalizadas de suicídio (não foi este o caso aqui relatado por Vergílio Ferreira). Segundo, dar tempo, atenção e compreensão a quem mostrar aflição (aqui, já houve, não direi a culpa, mas sem dúvida um lapso do dr. Moura; compreensível, embora, pois tinha um doente à espera).
(57/8)
Era necessário que todos os homens vivessem em estado de lucidez, se libertassem das pedras, chegassem ao milagre de ver. Era absolutamente necessário que a vida se iluminasse na evidência da morte.
Porquê a necessidade deste confronto com a morte? Vergílio Ferreira, noutro lugar (Espaço do Invisível IV, p. 16), explica-nos: (…) a vida é o maior bem do homem. Mas direi que é em face da morte que esse bem se ilumina, como é contra a noite que uma luz melhor se vê.
Esta "noite" é a consciência aguda e violenta de que
(58)
(...) Mas quem morre é o universo, é a pura necessidade de ser. (...)
(59)
O engenheiro recostou-se na cadeira como um advogado que se informa ao atender um cliente. Eu estava numa situação de inferioridade e o que desejava não era uma tolerância mas uma comunhão. (...)
Quantas vezes isto nos acontece! Com um livro, ou um filme, ou um simples pensamento que significam muito para nós e disso queremos dar notícia emocionada ao outro. E o outro usa de ceticismo, de desconfiança, de distância ao que nós dizemos. Não é agradável.
O problema é que nós fazemos exatamente o mesmo aos outros! E, no entanto, para que isso não acontecesse, bastaria apenas dar atenção e querer perceber o que fez a outra pessoa ficar emocionada, mais nada; e não querer dar uma resposta "inteligente", não querer pôr o nosso "eu" a separar-nos.
(60)
Procura! O rasto da tua radiação divina, o lume secreto da tua aparição, onde está?
(63)
(...) Mas no outro dia, assim que me levantei, coloquei-me no sítio donde me vira ao espelho e olhei. Diante de mim estava uma pessoa que me fitava com uma inteira individualidade que vivesse em mim e eu ignorava. Aproximei-me, fascinado, olhei de perto. E vi, vi os olhos, a face desse alguém que me habitava, que me era e eu jamais imaginara. Pela primeira vez eu tinha o alarme dessa viva realidade que era eu, desse ser vivo que até então vivera comigo na absoluta indiferença de apenas ser e em que agora descobria qualquer coisa mais, que me excedia e me metia medo. Quantas vezes mais tarde eu repetiria a experiência no desejo de fixar essa aparição fulminante de mim a mim próprio, essa entidade misteriosa que eu era e agora absolutamente se me anunciava.
Eis um dos pontos do romance onde se explica o título que o autor lhe deu.
Não é saber simplesmente que estou vivo. É sentir a revelação de que há algo sem nome em mim, de anterior a tudo quanto sei e recordo e ponho em palavras. Algo que está flagrantemente vivo e que fulgura em tudo e por detrás de tudo.
(67)
- Mastigar as palavras?
- Bem... É assim: a gente diz, por exemplo, pedra, madeira, estrelas ou qualquer coisa assim. E repete: pedra, pedra, pedra. Muitas vezes. E depois, pedra já não quer dizer nada.
Como, Carolino? Sabes então já a fragilidade das palavras, acaso o milagre de um encontro através delas connosco e com os outros? E saberás o que há em ti, o que te vive, e as palavras ignoram?
Repetir palavras negativamente carregadas constitui uma técnica comportamental antiga (Word Repeating Technique) que várias psicoterapias (por exemplo, a Acceptance and Commitment Therapy) ainda hoje usam para as esvaziar dessa carga emocional.
Curioso. Vergílio Ferreira detestava a "psicologia". Teria tido conhecimento desta técnica? Ou descobriu-a sozinho?
Quanto à técnica em si, considero o seu efeito psicológico questionável, já que o problema não está tanto na palavra em si, mas na ideia que ela simboliza. Quando me chamo de "burro" depois de uma asneira que fiz, esse nome incomoda-me e faz-me zangar ou ficar triste comigo mesmo. Mas não é a palavra em si que tem esse efeito, mas o que ela simboliza.
Parece-me que, mesmo que eu consiga dizer a palavra "burro" como se fosse uma sequência aleatória de sons sem significado aparente, o meu estado de espírito, fruto da minha perceção e posterior julgamento do que fiz, não se alterará significativamente. Por outras palavras, se uma ideia me queima de vergonha, não é por esvaziar a palavra que a nomeia que eu vou deixar de sentir essa vergonha.
Mas posso estar enganado e certamente haverá casos em que esta técnica será capaz de ajudar pessoas em dificuldades.
Voltando à ideia que Vergílio Ferreira aqui expressa, entendo que as palavras são fundamentais para chegar ao essencial de nós (a existência deste livro prova-o). Mas, depois, podem ser uma cortina que nos cega para realidade. Podem, inclusivamente, enganar-nos pois elas desconhecem o essencial de cada um de nós, e o que é específico e único em cada um de nós.
Eu tinha ainda de ir ao Nazaré antes que a livraria fechasse.
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