quinta-feira, 17 de junho de 2021

Aparição - Capítulo 10

 

10.

Trabalho no Liceu com entusiasmo - o entusiasmo do principiante, ou seja, do que ainda está criando. (...)


(108)

(...) Mas eu sabia, eu, que não tenho um Deus que me justifique e redima, eu, que, luto há tanto tempo por reconduzir à dimensão humana tudo quanto traz ainda um rasto divino, eu, que desejo reabsorver isso na minha condição mortal e efémera de um pobre arranjo de água e barro, eu, que nada recuso à minha emoção e ao meu alarme de tudo quanto me alarma ou me comove, eu, que sou materialista mas não só de um materialismo que se mede a metro e pesa na balança, eu, que conto com o reinado integral do homem na terra da sua condenação e grandeza, assumindo tudo quanto se anuncia em mistério e exaltação, (...)

Belíssimo programa de uma vida mais elevada (para além das misérias do dia-a-dia que nos arrastam para baixo), plena e una na sua multiplicidade.

Relativamente a «não tenho um Deus que me justifique e redima». Todos procuramos estas duas coisas, a justificação e a redenção. Deus ajudava a consegui-lo. Agora, que Deus morreu, é mais difícil. Justificação ainda vamos encontrando noutras paragens. No meu caso pessoal, nas Neurociências, na Psicologia Evolucionista e na Psicologia do Trauma.

Porém, a possibilidade de redenção desapareceu juntamente com Deus, pelo menos, para mim. Não existe redenção, só posso esperar encontrar algum alívio nesta situação de condenado sem esperança e de ausência de inocência, na prática da bondade, da generosidade e da compaixão com o mundo. Às vezes, lembrando-me de me sentir agradecido por poder fazê-lo.


(109)

(...) Falei aos moços de Proust, do tempo reencontrado nas lembranças, do halo que se ergue de um sabor que se conheceu na infância, das pervincas azuis de Rousseau, reencontradas mais tarde com a memória de outrora. Mas a minha memória não era bem essa. A minha memória não tinha apenas factos referenciáveis, não exigia a sua recuperação para que o halo se abrisse. A minha memória não era memória de nada. Uma música que se ouve pela primeira vez, um raio de sol que atravessa a vidraça, uma vaga de luar de cada noite podiam abrir lá longe, na dimensão absoluta, o eco dessa memória, que ia para além da vida, ressoava pelos espaços desertos, desde antes de eu nascer até quando eu nada fosse há muito tempo para lá da morte. Visão de uma alegria sem risos, de uma plenitude tranquila, ela falava de um tempo imemorial como as vozes oblíquas da noite e do presságio. A presença imediata esvaziava-se e o que ficava pairando era um tecido de bruma e de nada, canção sem fim, harmonia ignota de paragens sem nome. (...)

Um trecho maravilhoso sobre a memória. A memória de origens, da nostalgia do nunca, fazendo emergir emoções que tanto vêm do passado como do futuro, ambos talvez sonhados.

Ainda hoje de manhã, aqui em Olhão, um céu de neblina, um cheiro húmido e fresco a maresia, a fazerem nascer em mim a memória antiga da casa da Figueira da Foz, fria e sombria, acolchoada de madeiras, habitada por um desespero tranquilo não isento de uma esperança obscura.


(110)

(...) um homem que se interroga, se procura no absoluto de uma plenitude que é o seu sonho de entre pedras e cardos. (...)

Porque, para nos aproximarmos da plenitude sonhada, nunca podemos parar de interrogar o mundo e nós próprios. Interrogar não no sentido de fazer perguntas analíticas, mas no de buscar tudo o que não é imediatamente evidente, tudo o que não se pode encontrar na superfície das coisas, tudo o que é mais do domínio da emoção original do que do pensamento (ainda que holístico).


(111)

(...) Eu, porém, não sabia se o entendia bem, porque era possível que eu entendesse nele só o que sabia de mim. (...)

O germe de um anúncio de Estrela Polar? À parte desta lembrança minha, suspeito que é sempre isto que fazemos. Acabei de ler Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf, e ela ilustra bem este processo. Mais, além disso, nós por vezes também entendemos nos outros o que que estamos à espera de lá encontrar, normalmente a partir dos nossos preconceitos e ideias feitas - ou seja, a partir do que eu não sei de mim, mas que indubitavelmente pertence a mim.


(111)

(...) a sua curiosa destruição da linguagem:

Retomando o tema de (67).


(...) A galinha tombou num baque surdo e lá ficou, toda enovelada de penas, uma asa ainda semiaberta, cobrindo-lhe quase as patas estendidas.


sábado, 12 de junho de 2021

Aparição - Capítulo 9

 

9.

E a vida recomeçou. (...)


(83)

(...) Fixar uma vida em torno de uma ideia, de um sentimento, como é difícil! À unidade que nos pré-existe a cada um, à unidade de sermos, a vida imediata, quotidiana, é uma selva de caminhos, de veredas, de confusa vegetação. Tão fácil perdermo-nos! O mais grave, porém, é que na sua rede muitas vezes não sentimos que nos perdemos. Cada caminho impõe-se-nos na sua presença imediata. Um caminho é «o» caminho em cada instante que passa. (...)

E isto é tão verdade, desde as coisas mais prosaicas (como atermo-nos a um projeto de trabalho que nos apaixona) até às mais metafísicas (como descobrirmos o que de diferente e bom nos acontece momento a momento). Distraímo-nos, pensando que não e só a posteriori é que damos conta do engano e da perda de tempo.

Vergílio alerta-nos para o que pode correr menos bem quando se trata dos caminhos que podemos encontrar (ou desencontrar) no sentido de alcançar uma maior consciência e aí permanecer. Como se se tratasse de uma espécie de guia de auto-orientação ou de um mapa para um viajante metafísico.


(86)

(...) Mas o curso não era para entreter, era para lhe firmar uma... uma consciência. Sem dúvida, num curso pouco se aprende. Mas dá-nos pontos de referência, talvez nos dê uma certa forma de responsabilidade.

Boa questão: para que serve um curso? A 16 de Agosto de 1971, Vergílio diz no seu Conta-Corrente 1 (p. 93) que «A educação traça um horizonte de possíveis ao possível que se é.» Concordo em absoluto, desde que a área de conhecimento que estamos a "desbravar" esteja alinhada com os nosso interesses e afetos, caso contrário o curso servirá para muito pouco.

Em mim, veja-se a diferença entre o que a Engenharia Civil e a Psicologia contribuíram para me enriquecer como pessoa. Basta dizer que tenho o curso de Engenharia, mas não "sou" engenheiro; enquanto que, no que se refere à Psicologia, eu integrei-a na minha vida do dia-a-dia, na forma como me relaciono com os outros e naquilo que sou (ironicamente, apesar de nunca ter chegado a ser oficialmente um Psicólogo).

Portanto, um curso pode ser uma oportunidade excecional para crescermos como pessoas. Porque, quanto a aprender, aprende-se, não bem pouco, mas muita coisa "ao lado" do que nos é verdadeiro. Para mim, a outra grande vantagem do curso de Psicologia (o de Engenharia nem para isso serviu) foi dar-me meios de aprender por mim próprio sobre tudo aquilo que posteriormente me veio a suscitar a minha curiosidade, ensinando-me a distinguir o que não presta daquilo que é fiável.


(87)

(...) Mas eu não te ensinei nada! Ninguém nos ensina nada, talvez, minha amiga. Só se consegue aprender o que nos não interessa. Porque o mais, o que é do nosso fundo destino, somo-lo: se alguém no-lo ensinou, não demos conta disso. Ensinar então é só confirmar.

Uma afirmação polémica de Vergílio, daquelas que eu gosto porque "acorda" a nossa curiosidade habitualmente cansada e, assim, promove descobertas imprevistas. Claro que aqui ele mistura dois níveis de forma provocadora: o pessoal e o académico. Eles estão habitualmente separados, mas houve momentos do curso em que eles se tocaram e se chegaram a interrelacionar-se: por exemplo, nas disciplinas de Psicanálise ou de Epistemologia das Ciências. A sensação que eu tive é que eram peças que se encaixavam perfeitamente no puzzle (incompleto!) que era o meu «eu» - uma espécie de confirmação, acho eu.

A última frase também é muito interessante. Quando saímos da posição de aprendente para a de ensinante, algo continua como se elas fossem dois pólos da mesmíssima coisa. Portanto, quando ensino, ou melhor, quando preparo as aulas e quando os alunos questionam o que eu digo, lá volta a sensação de um puzzle a completar-se. Aqui, sim, a confirmação do que sou, e do que defendo a partir do que sou (não apenas do que conheço).


(89)

(...) Depois fui político. Ser avançado era bom e verdadeiro como ter força e ser novo. Depois deixei de ser novo e de fazer barulho. E, quando não houve barulho, ouvi vozes obscuras, submersas a esse mesmo barulho. Depois a vida não teve significado, porque me estava sem emprego. Bom: então, deste grau zero, descobri que estava vivo, que existia, e era eu. E agora tento salvar essa extraordinária descoberta, pô-la a funcionar com o universo e a morte. Voilà.

Autobiografia política do próprio Vergílio? Bem provável.


(95)

(...)

- Tenho de ir indo.

- Já dei ordens para o jantar. Não seja cobarde e desmancha-prazeres.

Uma fúria de cães mastigou-me os nervos. Seria havia pecado que pudesse vexar-me, era esse da cobardia. (...) Não entendiam que assumir a miséria do homem, enfrentar o que humilhava a sua condição era um sinal de coragem mais profunda.

- Não sei o que pretende de mim - disse eu. - Mas sei que não sou cobarde.

- Então sente-se - respondeu, enquanto abria a mesa.

Vergílio disse anos mais tarde que faltava às personagens de Aparição uma grandeza que estava presente em Cântico Final. Sim, Alberto é um anti-herói, talvez não cobarde, mas em que a voz da submissão está muito presente. Veja-se este episódio em que Ana o coloca numa "no-win situation": se ele sair, é porque foge em cobardia; se ele ficar, é porque obedece... em cobardia, novamente. Como sair desta situação?

Uma via poderia ser expondo o jogo desonesto de Ana, rindo-se dos seus ardis e acabando a fazer o que realmente lhe apetecia - ir-se embora (porque ele não desejava a companhia de Ana, que tinha acabado de o insultar, nem certamente a de Alfredo ou de Chico). Mas ele fica. Submissamente.


(98 e 99)

(...) Chico (...) Irra, falemos claro: que pretende você?

(...)

(...) Adequar a vida (que é um pleno de ser, um absoluto, uma positividade necessária) com a morte (que é uma nulidade integral, uma pura ausência, um nada-nada).

- Sou materialista! - disse eu.

(...)

- É exactamente porque sou materialista que esse mundo me intriga. Se tivesse deuses para lhes recambiar estes seus bens não me interrogava duas vezes. Interrogo-me, porque a morte é um muro sem portas.

Extraordinária definição de morte. E tão simples: «um muro sem portas.»


(...) A casa no Alto.


sábado, 15 de maio de 2021

Aparição - Capítulo 7

 

7.

Só no dia seguinte eu soube que a nossa conversa em casa do engenheiro tinha sido largamente comentada em casa dos Cerqueiras. (...)


(70)

Mas com quem falei primeiro foi com Sofia. Era um sábado e chovia desde alta noite. Lembro-me bem dessa primeira chuvada de Inverno, porque a chuva tem para mim o abalo da revelação e abre como auréola o halo da memória ao que nela aconteceu. Subtilmente, aliás, é à vibração inefável das horas da natureza que eu posso reconhecer melhor o que me vivi no passado. Um sol matinal, a opressão das sestas do Verão, o silêncio lunar, os ventos áridos de Março, os ocos nevoeiros, as massas pluviosas, os frios cristalizados são o acorde longínquo da música que me povoa, tecem a harmonia vaga de tudo o que fiz e pensei. (...)

Quando leio estas palavras, abre-se-me um espaço de evocação que não sou capaz de situar nem de particularizar, mas que me enche e me faz sentir vivo de uma estranha maneira, porém boa e autêntica, embora intransmissível. Talvez seja isto que, um pouco mais à frente, Vergílio Ferreira diz:

Conheço uma certa emoção das horas, sei da aparição dos instantes-limite, das vozes submersas, e gostava de dar aos outros essa notícia. Há uma vida atrás da vida, uma irrealidade presente à realidade, mundo das formas de névoa, mundo incoercível e fugidio, mundo da surpresa e do aviso. Assim o próprio presente pode ter a voz do passado, vibrar como ele à obscuridade de nós. A minha retórica vem do desejo de prender o que me foge, de contar aos outros o que ainda não tem nome e onde as palavras se dissipam com a névoa do que narram.


(74)

- Ouça, doutor: se alguma coisa me preocupou sempre foi ser consequente, unir o que faço ao que sinto. Porque não faz o mesmo?

Conseguimos habitualmente distinguir o fazer do sentir, embora eles estejam interligados, influenciando-se mutuamente de formas que ainda não entendemos completamente. No entanto, todos sabemos que o sentir, principalmente quando é intenso, se sobrepõe ao pensar, capturando este e pondo-o ao seu serviço (por isso é que encolerizados, assustados ou tristes podemos decidir fazer coisas de que nos arrependemos depois). Portanto, há que resistir, não para destruir o sentir, mas para conseguir uma colaboração mútua com o pensar e o atuar. Se não o fizermos, o resultado pode ser o de Sofia: solidão e uma espiral autodestrutiva a desembocar num beco sem muitas saídas.

Aliás, todos sentimos que há algo de selvagem neste desafio de Sofia. E, se não sentimos, o autor induz-nos a senti-lo nas reações de Alberto. De qualquer maneira, irmos a reboque das emoções e dos sentimentos não é liberdade, mas apenas uma ilusão dela.

Por outro lado, o que é verdadeiramente difícil é unir o que faço ao que penso ser justo e correto. Estarei a ser muito pessimista quando disser que, quase sempre, temos medo de o fazer? Quanto às emoções, é bem mais fácil: basta deixarmo-nos arrastar por elas... e quantas vezes o fazemos! Precisamente, por exemplo, quando temos medo de atuar de acordo com as nossas convicções mais elevadas!...


(74/5)

(...) Mas ela, com uma energia que era eficaz por me pôr diante de mim, por vir dela - um ser frágil -, repeliu-me com raios no olhar.

Senti-me miserável como quem é apanhado nu: (...)

Sofia despreza Alberto porque este limita-se a ir atrás do que sente, em primeiro lugar. Em segundo, porque ele atua em reação ao desafio dela, não em função da sua verdade mais profunda. Ficamos na dúvida sobre a autenticidade do gesto de Alberto.


(76)

Sofia falava. (...) Que havia, pois, mais para a vida, para responder ao seu desafio de milagre e de vazio, do que vivê-la no imediato, na execução absoluta do seu apelo? Eliminar o desejo dos outros para exaltar o nosso. Queimar no dia-a-dia os restos de ontem. Ser só abertura para amanhã. A vida real não eram as leis dos outros e a sua sanção e o seu teimoso estabelecimento de uma comunidade para o furor de uma plenitude solitária. O absoluto da vida, a resposta fechada para o seu fechado desafio só podia revelar-se e executar-se na união total com nós mesmos, com as forças derradeiras que nos trazem de pé e são nós e exigem realizar-se até ao esgotamento. Este «eu» solitário que achamos nos instantes de solidão final, se ninguém o pode conhecer, como pode alguém julgá-lo? E de que serve esse «eu» e a sua descoberta, se o condenamos à prisão? Sabê-lo é afirmá-lo! Reconhecê-lo é dar-lhe razão. (...)

Leio isto fascinado. Sinto um impulso quase irresistível para uma adesão total. Mas, Depois, começam a surgir-me uns alertas.

O primeiro é que "Eliminar o desejo dos outros" não é eticamente recomendável, além de ser pouco útil. Porque, ao tentarmo-lo, os outros vão resistir, não vão deixar que isso aconteça, obviamente. E isso trará, na melhor das hipóteses, demasiado ruído para um esforço que necessita de calma e concentração de esforços. Na pior, pode levar à tentativa de os outros nos destruírem (que é o que vai acabar por acontecer).

O "erro" aqui de Sofia é imaginar que aquele «eu» original existe independente dos outros, que faça ela o que fizer, ele não será afetado pela existência dos outros «eus». O ser humano é inerente e inatamente social: sabemos disso logo no início deste romance com o efeito que a aparição da mulher do narrador tem sobre este.

O segundo é que este «eu» e as suas forças nem sempre são de plenitude (já não falo de felicidade). Vivê-los até «até ao esgotamento» pode ser entrar numa espiral de violência contra os outros e contra nós mesmos, sem isso implicar que vivamos uma vida mais plena de significado.

Mas, sem dúvida, esta proposta fascina-nos:

(...) Que ao menos nós lhe dêmos, a isso que somos, a oportunidade de o sermos até ao fim. Gritar aos astros até enrouquecermos. Iluminarmos a brasa que vive em nós até nos  consumirmos. Respondermos com a absoluta liberdade ao desafio do fantástico que nos habita. (...)


- Meu bom assassino...


quinta-feira, 29 de abril de 2021

Textos selecionados e ditos por Vergílio Ferreira



Gosto muito, mas mesmo muito, de ouvir Vergílio Ferreira a dizer os seus textos. Não sei, talvez porque sinto nele a voz da solidão primordial, quer seja a da serra, quer seja a da planície (já a do mar não a sinto tanto; e muito menos a da cidade).
Mas sobre isto que acabo de dizer, partilho aqui um texto publicado na Conta-Corrente 3, no dia 17 de Dezembro de 1980:

(...) Vim do Norte, da montanha da água e da verdura: a extraordinária individualidade da planície resiste longamente a quem a ignora. Mas, por fim, não me foi difícil perceber que a linguagem da Serra se reconhece de algum modo na da planura: é a linguagem da força cósmica, da desolação, do silêncio. Se a montanha apela mais para a epopeia e a planície para a tragédia, tragédia e epopeia têm um signo comum que o lirismo desconhece. (...)

Quanto à gravação feita, não tenho a certeza de que a música de fundo acrescente alguma coisa. Infelizmente, sinto-a um pouco como "ruído".

sábado, 17 de abril de 2021

Aparição - Capítulo 6

 

6.

Senti-me embrutecido, atordoado em todo o corpo.


(57)

(...) Que fazemos nós na vida? Que incrível pertinácia nos resolve numa ilusão toda a imensidade do milagre de estar vivo? Não vale então nada, meu velho desconhecido, esse prodígio de seres, em face de uma mão que não é já a de um semeador?

Ou seja, haverá alguma razão que seja mais forte do que o fantástico de estar vivo? Algumas haverão, certamente, claro. Mas serão só essas que estão por detrás dos atuais números elevadíssimos de suicídios?

O dr. Moura não se apercebeu dos sinais dados pelo trabalhador Bailote. Esta é a também a tragédia de todos quantos convivem com as pessoas que, depois, se suicidam. Como evitá-la? Primeiro, nunca menorizar intenções verbalizadas de suicídio (não foi este o caso aqui relatado por Vergílio Ferreira). Segundo, dar tempo, atenção e compreensão a quem mostrar aflição (aqui, já houve, não direi a culpa, mas sem dúvida um lapso do dr. Moura; compreensível, embora, pois tinha um doente à espera).


(57/8)

Era necessário que todos os homens vivessem em estado de lucidez, se libertassem das pedras, chegassem ao milagre de ver. Era absolutamente necessário que a vida se iluminasse na evidência da morte.

Porquê a necessidade deste confronto com a morte? Vergílio Ferreira, noutro lugar (Espaço do Invisível IV, p. 16), explica-nos: (…) a vida é o maior bem do homem. Mas direi que é em face da morte que esse bem se ilumina, como é contra a noite que uma luz melhor se vê.

Esta "noite" é a consciência aguda e violenta de que

(58)

(...) Mas quem morre é o universo, é a pura necessidade de ser. (...)


(59)

O engenheiro recostou-se na cadeira como um advogado que se informa ao atender um cliente. Eu estava numa situação de inferioridade e o que desejava não era uma tolerância mas uma comunhão. (...)

Quantas vezes isto nos acontece! Com um livro, ou um filme, ou um simples pensamento que significam muito para nós e disso queremos dar notícia emocionada ao outro. E o outro usa de ceticismo, de desconfiança, de distância ao que nós dizemos. Não é agradável.

O problema é que nós fazemos exatamente o mesmo aos outros! E, no entanto, para que isso não acontecesse, bastaria apenas dar atenção e querer perceber o que fez a outra pessoa ficar emocionada, mais nada; e não querer dar uma resposta "inteligente", não querer pôr o nosso "eu" a separar-nos.


(60)

Procura! O rasto da tua radiação divina, o lume secreto da tua aparição, onde está?


(63)

(...) Mas no outro dia, assim que me levantei, coloquei-me no sítio donde me vira ao espelho e olhei. Diante de mim estava uma pessoa que me fitava com uma inteira individualidade que vivesse em mim e eu ignorava. Aproximei-me, fascinado, olhei de perto. E vi, vi os olhos, a face desse alguém que me habitava, que me era e eu jamais imaginara. Pela primeira vez eu tinha o alarme dessa viva realidade que era eu, desse ser vivo que até então vivera comigo na absoluta indiferença de apenas ser e em que agora descobria qualquer coisa mais, que me excedia e me metia medo. Quantas vezes mais tarde eu repetiria a experiência no desejo de fixar essa aparição fulminante de mim a mim próprio, essa entidade misteriosa que eu era e agora absolutamente se me anunciava.

Eis um dos pontos do romance onde se explica o título que o autor lhe deu.

Não é saber simplesmente que estou vivo. É sentir a revelação de que há algo sem nome em mim, de anterior a tudo quanto sei e recordo e ponho em palavras. Algo que está flagrantemente vivo e que fulgura em tudo e por detrás de tudo.


(67)

- Mastigar as palavras?

- Bem... É assim: a gente diz, por exemplo, pedra, madeiraestrelas ou qualquer coisa assim. E repete: pedra, pedrapedra. Muitas vezes. E depois, pedra já não quer dizer nada.

Como, Carolino? Sabes então já a fragilidade das palavras, acaso o milagre de um encontro através delas connosco e com os outros? E saberás o que há em ti, o que te vive, e as palavras ignoram?

Repetir palavras negativamente carregadas constitui uma técnica comportamental antiga (Word Repeating Technique) que várias psicoterapias (por exemplo, a Acceptance and Commitment Therapy) ainda hoje usam para as esvaziar dessa carga emocional.

Curioso. Vergílio Ferreira detestava a "psicologia". Teria tido conhecimento desta técnica? Ou descobriu-a sozinho?

Quanto à técnica em si, considero o seu efeito psicológico questionável, já que o problema não está tanto na palavra em si, mas na ideia que ela simboliza. Quando me chamo de "burro" depois de uma asneira que fiz, esse nome incomoda-me e faz-me zangar ou ficar triste comigo mesmo. Mas não é a palavra em si que tem esse efeito, mas o que ela simboliza.

Parece-me que, mesmo que eu consiga dizer a palavra "burro" como se fosse uma sequência aleatória de sons sem significado aparente, o meu estado de espírito, fruto da minha perceção e posterior julgamento do que fiz, não se alterará significativamente. Por outras palavras, se uma ideia me queima de vergonha, não é por esvaziar a palavra que a nomeia que eu vou deixar de sentir essa vergonha.

Mas posso estar enganado e certamente haverá casos em que esta técnica será capaz de ajudar pessoas em dificuldades.

Voltando à ideia que Vergílio Ferreira aqui expressa, entendo que as palavras são fundamentais para chegar ao essencial de nós (a existência deste livro prova-o). Mas, depois, podem ser uma cortina que nos cega para realidade. Podem, inclusivamente, enganar-nos pois elas desconhecem o essencial de cada um de nós, e o que é específico e único em cada um de nós.


Eu tinha ainda de ir ao Nazaré antes que a livraria fechasse.


sexta-feira, 9 de abril de 2021

Aparição - Capítulo 5

 

5.

E todas as quartas e sábados eu dava lição a Sofia.


(47)

Começámos pelo princípio para recapitular. Ela cantava as declinações, tinha um modo gracioso de se enganar e de tal forma que eu sentia obscuramente que os erros é que estavam certos. E era assim como se qualquer coisa a habitasse e fosse maior do que ela e do que a miséria das regras de gramática. Mas tinha sobretudo uma maneira brusca e cravada de travar e de me ficar olhando, como se me procurasse em qualquer sítio de mim onde não houvesse lembrança do que estávamos dizendo.

Como toda esta geração que cresceu sem amizades femininas, assistimos aqui mais um exemplo de mitificação da mulher - devo dizer que, se calhar erradamente, considero esta uma das formas mais belas e poéticas de sexismo benévolo... porque, apesar de muito matizado, é um sexismo benévolo que aquele excerto do romance revela. Senão, vejamos:

«Estes sentimentos "positivos" caracterizam as concepções sexistas benévolas, que se expressam através de atitudes de admiração e proteção e, na maioria das vezes, não são consideradas como uma forma de discriminação contra a mulher.» (Raquel Pereira Belo; Valdiney V. Gouveia; Jorge da Silva Raymundo; Célia Maria Cruz Marques (2005). Correlatos valorativos do sexismo ambivalente. Psicol. Reflex. Crit. vol.18 no.1 Porto Alegre Jan./Apr. 2005)

Tal como Vergílio Ferreira, passei por isto e, ainda hoje, não consigo deixar de, ao nível emocional, mergulhar nesta mitificação. Depois, o meu cérebro racional (auxiliado pela memória de muitas desilusões) vem abrir-me os olhos para eu não levar a sério esta fantasia.

Passei por isto, mas não só, também pela reação suplementar a esta que Vergílio Ferreira descreve aqui magistralmente:

(48)

(...) E eu sentia que tudo o que é vivo na terra estava ali presente no seu corpo. Que tinha que fazer, frente à execução da alegria, o meu pobre ministério de cadáver? Assim um íntimo desastre me tolhia e  envelhecia as palavras. (...)

O que é interessante é que Vergílio Ferreira de alguma forma a seguir desmente aquele sexismo através de uma afirmação de rebeldia de Sofia, com a qual empatizamos de imediato:

- Porque há-de a vida ter razão sobre nós? Porque havemos de ser sempre nós a submeter-nos? Um curso e um marido e filhos...

Ou seja, rebeldia contra a vida convencional, convencionalmente correta...


(52)

Em certo serão de Inverno, Sofia, Ana quebrou-te, creio que por descuido, um braço a uma boneca. Tu foste para o quarto, grave, sem uma lágrima. E de um a um quebraste todos os teus brinquedos, impedindo violentamente que te levassem os cacos: melhor que a náusea das compensações medianas, preferias o absoluto da destruição.

Senti um ataque brutal a todas as minhas vísceras e vi como era compreensível o sonho de Sofia. Realizar a vida num acto, num gesto, num sonho, por mais miserável que seja.

Sim, há aqui uma grandeza, um absoluto que atrai, que se admira. O que me interrogo, porém, é se se se ama uma pessoa assim. Dificilmente. E por isso, sem amor, esta pessoa encaminha-se irresistivelmente para o desastre.

Aliás, Vergílio Ferreira, mais à frente, faz uma correção, pequena, mas que se traduz num mundo de diferença:

(53)

«Reunir a vida num acto, num sonho. Mas ter primeiro a evidência da sua grandeza, da sua verdade. E ter a evidência daquilo que ele recusa.»

Este «Mas» tem toda a importância porque pode contribuir para afastar qualquer tendência mais destruidora, seja auto-, seja hetero-.


(53/4/5)

Um dos episódios mais marcantes deste livro, o encontro com o semeador Bailote. O problema da velhice (quem disse que, antigamente, os velhos eram respeitados?), do valor da utilidade para o que importa na vida, da objetificação do ser humano por parte de patrões.


- O homem enforcou-se.


terça-feira, 6 de abril de 2021

Aparição - Capítulo 4

 

4.

Portanto, eu tinha um problema: justificar a vida em face da inverosimilhança da morte. (...)


Este capítulo é um dos mais complexos, ricos e interessantes deste livro. Vergílio Ferreira consegue condensar em quatro páginas uma quantidade infinita de sabedoria. Constituindo cada frase, por si só, uma unidade de reflexão independente ou quase independente das outras. Uma escrita extraordinária!


(43)

Portanto, eu tinha um problema: justificar a vida em face da inverosimilhança da morte. E nunca mais até hoje eu soube inventar outro. (...)

Ou seja, como viver totalmente presente, isto é, não distraído, não ausente, não entorpecido, não cego, etc.? Sabendo que vem aí a morte que nega tudo e tudo rasura?

Sim, quanto aos outros problemas sinto-os também um pouco como "invenções", que a maior parte deles não são tão reais assim (tanto que, passados uns anos, ou menos, esquecemos até que eles existiram).

Portanto, o problema: Se sei que vamos todos morrer, eu incluído, que valor pode ter a vida? aliás, pergunto-me muitas vezes: com tudo o que eu gasto e consumo para viver como vivo, de um ponto de vista objetivo, a minha vida vale tanto? Para, depois, acabar no nada? E, ainda por cima, esquecido, tão esquecido como se nunca tivesse existido. Confesso que às vezes tenho dúvidas.

São estas dúvidas que Vergílio pretende esclarecer neste capítulo. Dando uma resposta? Talvez não, talvez fazendo perguntas diferentes.

Mas há mais. A um nível mais imediatamente prático, como arranjar força para lutar contra a injustiça, a miséria, a prisão, sabendo que nada acaba e que tudo acaba? Mas, absolutamente, eu é que acabo e tudo acaba comigo, pois sou eu que me dou vida a essa luta e, acabando eu, acaba a luta para mim.


(43)

(...) - quantos modos de esquecer ou de não saber ainda o pequeno problema fundamental. (...)

Sim, tantas maneiras que a sociedade criou para nos distrairmos, para não pensarmos sequer! Temos essa pressão, mas acrescentamos-lhe outras da nossa lavra. Inventar problemas acessórios é, como vimos, uma delas. Além de que esquecer é algo que fazemos com muita facilidade. No fim de contas, a memória controlada pelo próprio ser vivo é um ganho evolutivamente recente. É como se este problema nos pesasse, como se a sua tensão fosse intolerável para uma vida que todos desejamos mais tranquila. Como diz Vergílio:


(43)

(...) E quantas vezes agora o esqueço? O mais forte em nós é esta voz mineral, de fósseis, de pedras, de esquecimento. Ela germina no homem e faz-lhe pedras de tudo. Assim, quando procuro em mim a face original da minha presença no mundo, o que descubro não é o alarme da evidência, o prodígio angustioso da minha condição: o que descubro quase sempre é a indiferença bruta de uma coisa entre coisas. (...)

Uma das razões pelas quais não acredito na iluminação budista é precisamente o facto de aquilo que, numa altura da nossa vida, constituiu uma iluminação, um relâmpago de sabedoria, desaparece sempre inevitavelmente. Com sorte, conseguimos ficar com alguns resíduos vivos, às vezes pistas que nos permitem chegar outra vez a um momento semelhante. Mas habitualmente nem isso.

Quando li a frase «quando procuro em mim a face original da minha presença no mundo», veio-me à ideia a definição de Mindfulness dada por Jon Kabat-Zinn: (...) awareness thar arises through paying attention, on purpose, in the present moment, non-judgementally.

Note-se que, para a palavra portuguesa consciência, os anglo-saxónicos têm pelo menos três diferentes: conscience (a nossa consciência moral), consciousness (a nossa consciência das coisas) e awareness (uma perceção e compreensão muito abrangentes de tudo o que se está a passar) que penso que só pode ter a tradução de "consciencialização".

Aquela definição está muito próxima do tipo de consciência que Vergílio defende. Repare-se que Jon Kabat-Zinn não diz, na definição, ao que a pessoa deve prestar atenção. Ora, a seguir, ele introduz uma pequena "batota", ao propor que prestemos atenção à respiração, o que, apesar de tudo, já é uma distração.

Vergílio Ferreira é, assim, muito mais radical (no sentido de sério e rigoroso). Ele pede a nossa atenção para o que é essencial e, como já o sabemos bem, «O essencial é invisível para os olhos...» (Antoine de Saint-Exupéry, O Principezinho, fala da raposa). E que "essencial" é este? Se fosse possível dizê-lo, isso significaria que ele se teria tornado visível, logo, não essencial...


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E todavia, agora que me descubro vivo, agora que me penso, me sinto, me projecto nesta noite de vento, de estrelas, agora que me sei desde uma distância infinita, me reconheço não limitado por nada mas presente a mim próprio como se fosse o próprio mundo que sou eu, agora nada entendo da minha contingência. Como pensar que «eu poderia não existir»? Quando digo «eu», já estou vivo... Como entender que esta iluminação que sou eu, esta evidência axiomática que é a minha presença a mim próprio, esta fulguração sem princípio que é eu estar sendo, como entender que pudesse «não existir»?(...) E todavia eu sei que «isto» nasceu para o silêncio sem fim...

E do silêncio sem fim... Também tento imaginar o que era ser eu antes de ter nascido, quem é que estava «lá». Claro que a resposta racional é «nada». Mas imaginá-lo é um muro que não se consegue ultrapassar, pois nós estamos do lado de cá, do lado da existência e da vida.

Gosto mais de tentar este exercício, chamemos-lhe assim à falta de palavra melhor, porque estou menos contaminado culturalmente por narrativas fantasistas. Porque é curioso como a religião em que eu nasci e me criei não se ocupa do que éramos nós antes de nascer. Apenas se preocupa com o que acontece depois. Assim, parto para esta procura com um olhar mais puro.

E, de repente, eu existo-me como nunca existi antes. Porque do que eu fui só tenho uma memória e, agora, eu sou uma vivência. Que é sempre única e insubstituível. E exaltante. Que resulta do milagre (pois de um milagre se trata) de estar vivo.


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Mas ofendo-te, velha mulher, aqui a desvendar a tua psicologia - eu, que detesto como um insulto essa coscuvilhice das minudências íntimas, esse ofensivo desmontar de relojoaria, como se um ser humano fosse um brinquedo.

Não posso deixar de pensar que Vergílio Ferreira tem toda a razão. Mas a nossa necessidade de para tudo encontrar causas e efeitos (não esqueçamos que o cérebro que faz isto foi-nos dotado pela natureza e pela evolução a fim de melhorar as nossas condições de sobrevivência) leva-nos a todos (até ao próprio autor) a cair sempre neste processo um tanto degradante, se não estiver iluminado pela empatia e pela compaixão.

Mas não só. Também o deve acompanhar a humildade de aceitar que nos «enganamos» sempre. Isto é, que, por mais inteligentes e perspicazes que sejamos, não conseguimos viver o que o outro está a viver, em primeiro lugar. Em segundo, quando traduzimos aquela tentativa de compreensão por palavras, estamos a destruir irremediavelmente a complexidade e a energia da pessoa objeto da nossa observação, reduzindo-a muitas vezes a uma caricatura falsa e cruel. Macbeth, pela mão de Shakespeare, de alguma forma alerta-nos:

Life's but a walking shadow, a poor player

That struts and frets his hour upon the stage

And then is heard no more: it is a tale

Told by an idiot, full of sound and fury,

Signifying nothing.

Ou, em português:

A vida é apenas uma sombra errante, um mau ator

A se pavonear e afligir no seu momento sobre o palco

E do qual nada mais se ouve. É uma história

Contada por um idiota, cheia de som e fúria,

Significando nada.


Em suma, Vergílio Ferreira detesta a Psicologia. a explicação e a descrição de como o ser humano funciona, porque o que é fundamental para a vida não é o "como", mas "o que" ou "quem" eu sou.


(...) assim eu esqueço tudo, e o que te resume, boa mulher, é esse teu velho álbum de fotografias, que tanta vez me explicaste por saberes que eu conhecia já a vertigem do tempo e me legaste depois para o guardar e eu tenho agora aqui na minha frente como o espectro das eras e das gentes que já mal sei e me fitam ainda do lado de lá da vida e me querem falar sem poderem e me angustiam como o olhar humano do Mondego dias antes de o António o matar.


Aparição - Capítulo 10

  10. Trabalho no Liceu com entusiasmo - o entusiasmo do principiante, ou seja, do que ainda está criando. (...) (108) (...) Mas eu sabia, e...