10.
Trabalho no Liceu com entusiasmo - o entusiasmo do principiante, ou seja, do que ainda está criando. (...)
(108)
(...) Mas eu sabia, eu, que não tenho um Deus que me justifique e redima, eu, que, luto há tanto tempo por reconduzir à dimensão humana tudo quanto traz ainda um rasto divino, eu, que desejo reabsorver isso na minha condição mortal e efémera de um pobre arranjo de água e barro, eu, que nada recuso à minha emoção e ao meu alarme de tudo quanto me alarma ou me comove, eu, que sou materialista mas não só de um materialismo que se mede a metro e pesa na balança, eu, que conto com o reinado integral do homem na terra da sua condenação e grandeza, assumindo tudo quanto se anuncia em mistério e exaltação, (...)
Belíssimo programa de uma vida mais elevada (para além das misérias do dia-a-dia que nos arrastam para baixo), plena e una na sua multiplicidade.
Relativamente a «não tenho um Deus que me justifique e redima». Todos procuramos estas duas coisas, a justificação e a redenção. Deus ajudava a consegui-lo. Agora, que Deus morreu, é mais difícil. Justificação ainda vamos encontrando noutras paragens. No meu caso pessoal, nas Neurociências, na Psicologia Evolucionista e na Psicologia do Trauma.
Porém, a possibilidade de redenção desapareceu juntamente com Deus, pelo menos, para mim. Não existe redenção, só posso esperar encontrar algum alívio nesta situação de condenado sem esperança e de ausência de inocência, na prática da bondade, da generosidade e da compaixão com o mundo. Às vezes, lembrando-me de me sentir agradecido por poder fazê-lo.
(109)
(...) Falei aos moços de Proust, do tempo reencontrado nas lembranças, do halo que se ergue de um sabor que se conheceu na infância, das pervincas azuis de Rousseau, reencontradas mais tarde com a memória de outrora. Mas a minha memória não era bem essa. A minha memória não tinha apenas factos referenciáveis, não exigia a sua recuperação para que o halo se abrisse. A minha memória não era memória de nada. Uma música que se ouve pela primeira vez, um raio de sol que atravessa a vidraça, uma vaga de luar de cada noite podiam abrir lá longe, na dimensão absoluta, o eco dessa memória, que ia para além da vida, ressoava pelos espaços desertos, desde antes de eu nascer até quando eu nada fosse há muito tempo para lá da morte. Visão de uma alegria sem risos, de uma plenitude tranquila, ela falava de um tempo imemorial como as vozes oblíquas da noite e do presságio. A presença imediata esvaziava-se e o que ficava pairando era um tecido de bruma e de nada, canção sem fim, harmonia ignota de paragens sem nome. (...)
Um trecho maravilhoso sobre a memória. A memória de origens, da nostalgia do nunca, fazendo emergir emoções que tanto vêm do passado como do futuro, ambos talvez sonhados.
Ainda hoje de manhã, aqui em Olhão, um céu de neblina, um cheiro húmido e fresco a maresia, a fazerem nascer em mim a memória antiga da casa da Figueira da Foz, fria e sombria, acolchoada de madeiras, habitada por um desespero tranquilo não isento de uma esperança obscura.
(110)
(...) um homem que se interroga, se procura no absoluto de uma plenitude que é o seu sonho de entre pedras e cardos. (...)
Porque, para nos aproximarmos da plenitude sonhada, nunca podemos parar de interrogar o mundo e nós próprios. Interrogar não no sentido de fazer perguntas analíticas, mas no de buscar tudo o que não é imediatamente evidente, tudo o que não se pode encontrar na superfície das coisas, tudo o que é mais do domínio da emoção original do que do pensamento (ainda que holístico).
(111)
(...) Eu, porém, não sabia se o entendia bem, porque era possível que eu entendesse nele só o que sabia de mim. (...)
O germe de um anúncio de Estrela Polar? À parte desta lembrança minha, suspeito que é sempre isto que fazemos. Acabei de ler Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf, e ela ilustra bem este processo. Mais, além disso, nós por vezes também entendemos nos outros o que que estamos à espera de lá encontrar, normalmente a partir dos nossos preconceitos e ideias feitas - ou seja, a partir do que eu não sei de mim, mas que indubitavelmente pertence a mim.
(111)
(...) a sua curiosa destruição da linguagem:
Retomando o tema de (67).
(...) A galinha tombou num baque surdo e lá ficou, toda enovelada de penas, uma asa ainda semiaberta, cobrindo-lhe quase as patas estendidas.