segunda-feira, 29 de março de 2021

Aparição - Capítulos 1, 2 e 3


1.

Pelas nove da manhã desse dia de Setembro cheguei enfim à estação de Évora. (...)


(13)

Está uma manhã bonita, com um sol íntimo dourando o ar, um vento leve da planície, fresco de orvalhos.

É a primeira “intervenção” de muitas da cidade de Évora. Cidade – Personagem? Ou espaço ao serviço das personagens? Isto é, saberemos do estado de espírito das personagens pela maneira como veem e sentem a cidade? A resposta à segunda parte da pergunta parece-me evidente que é positiva. Mas eu acarinho a ideia de que Évora é também uma personagem deste livro, é certo que uma personagem com muitas faces e muitas ressonâncias, mas personagem apesar de tudo.

 

(18)

Relembro. Uma grande mesa oval resplandecente de brancura, cristais, reflexos de louças, dois grandes candeeiros de globos pálidos, e fora, pelos espaços da noite nua, uma memória grande de paz. Um longo abraço, quente de ternura, sufoca-nos a todos na procura de um refúgio, de uma alegria perdida quando? onde? o sonho não é de nunca.

«Uma alegria perdida» talvez quando a mãe começa a afastar-se do bebé. Quando os pais começam a afastar-se. Ou seja, quando saímos ou somos obrigados a sair da infância.

 

(...) Uma grande lua solene, suspensa sobre a aldeia, banhava toda a massa da montanha.

 


2.

Inútil tentar dormir. (...)


(...) Quer saber onde é que o pode encontrar.



3.

Mas não foi fácil encontrarmo-nos. (...)


(31) Apresentação das personagens femininas deste romance.

Uma constante na escrita de Vergílio Ferreira: mulheres surgem-nos mitificadas pelo olhar do narrador. Penso que tem a ver com o facto de, no tempo da ditadura, durante os primeiros anos de vida em que as raparigas “aparecem”, os rapazes eram afastados e dificilmente podiam conviver com elas.

No caso de Vergílio Ferreira (que esteve vários anos num seminário), acrescenta-se o afastamento da mãe que terá deixado uma “ferida” aberta e uma sede de uma mulher maior que a vida capaz de preencher esse vazio original e capaz de curar essa “ferida”.

Mas isso tudo pertence ao passado, poder-se-á argumentar. Pois, mas é o passado a matéria romanesca da maior parte dos seus romances. Porque, segundo Vergílio, só o passado abre o espaço à evocação maravilhada.

E quando se junta o feminino e a arte, como quando Cristina toca piano em (35 e 36), então surge aos nossos olhos de leitores o testemunho de uma vivência simplesmente extasiada.

 

(32)

Mas a arte não era para mim um mundo da letra impressa, uma estúpida invenção de passatempo ou de vaidade: era uma comunhão com a evidência, uma reencarnação na verdade de origens (…)

Pelo menos em Vergílio Ferreira, a arte é isto. Mas eu partilho desta visão da arte que ele, aliás, desenvolveu extensamente na sua obra ensaística.

 

(32)

Sim, Ana. Essa tua inquietação, essa tua fúria silogística, o desejo encarniçado de demonstrares, deram-me cedo a certeza de que nada em ti estava seguro.

É interessante como, abominando Vergílio Ferreira a psicologia (como veremos confirmado mais à frente), ele nunca deixa de ter observações psicológicas absolutamente perspicazes e certeiras (e que nada têm a ver com a habitualmente chamada “psicologia de café”).

 

(34)

Imprevistamente, Ana regressou à sua obsessão:

- Há uns versos no seu livro que me intrigam. Dizem assim, mais ou menos:

Do sangue nascem os deuses

que as religiões assassinam.

Ao sangue os deuses regressam

e só aí são eternos.

- Ah, não! - clamou Moura, bruscamente acordado na sua sobremesa. - Deixem Deus sossegado e o doutor Soares também.

E Vergílio Ferreira não nos diz mais nada sobre estes versos, deixando a nós, leitores, o trabalho e o prazer de os interpretar. Eis uma das coisas que mais aprecio neste escritor: como ele diz noutro lugar, ele assume sempre que o leitor é inteligente. E muito eu aprecio isso!

Como os interpreto eu? Com a ajuda de outras leituras que fiz de Vergílio Ferreira, suponho que os deuses nascem da nossa profunda fragilidade humana e da correspondente necessidade de alguma segurança. Nomeadamente, o ser humano sabe, ao contrário dos outros animais, que vai morrer. Este conhecimento seria insuportável se estivesse sempre presente no nosso espírito e se não tivéssemos um viés do otimismo impregnado em nós (ver Tali Sharot (2012). The Optimism Bias. Londres: Constable & Robinson Ltd.). Mas é uma realidade incontornável. Porém, além disso, os seres humanos precisaram de se apoiar em alguém mais poderoso e protetor do que eles e dessa necessidade profunda surgiram os deuses.

Porém, a institucionalização dessa criação tornou-a estúpida e vazia de sentido e, por consequência, “Deus morreu”. Mas a necessidade e a busca original ainda continuam vivas e angustiantes no ser humano, no mais fundo de si.

Também interpreto este poema como querendo alertar-nos para o risco de, ao querer encaixar os nossos valores mais profundos num regulamento ou numa instituição, poderem perder o seu fulgor e deixarem de ser uma fonte de motivação e de força interiores. Os nossos valores mais autênticos é ao mais fundo de nós que os devemos procurar e tentar encontrar, não fora de nós. Encontrados aí no nosso íntimo profundo, é aí que eles viverão talvez para sempre.


(35)

Cristina toca: E então eu vi, eu vi abrir-se à nossa frente o dom da revelação.

Todo este trecho me surge como metáfora do "nascimento" da Arte.


(39)

E, todavia, como é difícil explicar-me! Há no homem o dom perverso da banalização. Estamos condenados a pensar com palavras, a sentir em palavras, se queremos pelo menos que os outros sintam connosco. Mas as palavras são pedras. Toda a manhã lutei não apenas com elas para me exprimir, mas ainda comigo mesmo para apanhar a minha evidência. A luz viva nas frestas da janela, o rumor da casa e da rua, a minha instalação nas coisas imediatas mineralizavam-me, embruteciam-me. Tinha o meu cérebro estável como uma pedra esquadrada, estava esquecido de tudo e no entanto sabia tudo. Para reparar a minha evidência necessitava de um estado de graça. Como os místicos em certas horas, eu sentia-me em secura. (…)

Palavras para acordar a consciência (no sentido de "awareness", não no sentido de "conscience", nem de "consciousness"). Depois, para guardá-la na memória. E palavras para, exprimindo-me, chegar aos outros, seja como "informação", seja como "obra de Arte".

O facto é que muitos insights são relâmpagos, não são dias claros e longos. O problema é sempre como voltar ao estado de graça inicial. Escrevemos para mais tarde podermos agarrar aquela evidência. Só que, fora do estado de graça, aquelas palavras tornam-se opacas, obscuras e deixam de fazer sentido para nós. Isto, claro, porque não somos Vergílio Ferreira. De cada vez que leio umas páginas deste livro, o estado de graça reacende-se como se estivesse sempre ali, apenas à espera de que uma luz o ilumine. Vergílio Ferreira é sempre essa luz constante e única.

 

(41)

(…) A verdade aparece e desaparece. Deus, a imortalidade e uma ideologia política e a sedução de uma obra de arte e a sedução de uma mulher – onde começam?, onde findam? Sou um indizível equilíbrio interior. Vivi, agi, toquei com as mãos tanta ilusão consistente. Depois a ilusão desfez-se. (…) Não cabe. Como não cabe a simpatia das mulheres que aborreci. Como não cabem as anedotas da infância, que já não têm graça nenhuma. Como não cabe nada do que já não sou eu. Não discuto, agora, não discuto! Sei lá porque é que uma anedota de que ri não tem hoje para mim graça nenhuma! Sei só que a não tem.

O mistério das coisas que nos encantaram e que, depois, perderam todo o brilho. O reverso disto é o Curse of Knowledge bias: nós já não nos lembramos do que é não saber, não dominar uma determinada competência. Por exemplo, o que me é não saber ler? Ou me não saber andar de bicicleta? Por já não conseguirmos evocar essas experiências antigas de “ausência” desse conhecimento, fica irremediavelmente perdida a surpresa fascinada das primeiras leituras ou dos primeiros passeios de bicicleta sem cair.

Como é fulcral este equilíbrio interior! Que evidencia como as razões vivem póstumas à decisão inconsciente, que é feita lá onde não chegamos. Mais, de as razões serem supérfluas e, na verdade, "não verdadeiras". Por isso, a exclamação «Sei lá porque (...)!». Razões que são muitas vezes apenas construções artificiais que procuram aprisionar o indizível.

 

(41)

E, todavia, pesa-me como uma pata de violência a realidade da pessoa que somos. Há muita coisa a arrumar, a harmonizar, muita coisa ainda a morrer. Mas por enquanto está viva. 

Esta «realidade» que sei que vai acabar. Mas sei-o apenas com um conhecimento académico, praticamente impossível de sentir verdadeiramente, a não ser em momentos de exceção. Podemos somente não ignorar o confronto dessa minha «realidade da pessoa» que sou com a ideia de morte, não tentando aliviar a tensão aí criada, a fim de ser inteiramente humano. E poder apreciar integralmente a dádiva de estarmos vivos.


(41)

Por enquanto sinto a evidência de que sou eu que me habito, de que vivo, de que sou uma entidade, uma presença total, uma necessidade do que existe, porque só há eu a existir, porque eu estou aqui, arre!, estou aqui, EU, este vulcão sem começo nem fim, só actividade, só estar sendo, EU, esta obscura e incandescente e fascinante e terrível presença que está atrás de tudo o que digo e faço e vejo - e onde se perde e esquece. EU! Ora este «eu» é para morrer. Morre como a intimidade de uma casa derrubada. Sei-o com a certeza absoluta do meu equilíbrio interior. Mas como é possível? Agora eu sou essa intimidade, agora eu sou o seu espírito, a sua evidência.

Mais uma vez, uma bela aproximação do Eu Observador. Como já referimos no final da postagem anterior, pela sua própria natureza, o Eu Observador não é suscetível de ser descrito pela linguagem, como Steven C. Hayes nos diz na obra referida: (…) the observing self is not an object of verbal relations. That is why we “know” less about it. The observing self is not a content-based sense of self that can be described directly. (…).


(...) Agora eu sou essa intimidade, agora eu sou o seu espírito, a sua evidência.


segunda-feira, 22 de março de 2021

Aparição – Trecho inicial em itálico

 


Aparição (1980), 15ª edição. Amadora: Livraria Bertrand.


Como introdução: Aparição talvez seja o romance mais extraordinário e único que já li em toda a minha vida longa de leitor. Só isto.



Sento-me aqui nesta sala vazia e relembro. (...)


(9)

Olho essa jarra, essas flores, e escuto o indício de um rumor de vida, o sinal obscuro de uma memória de origens.

Olho a minha cadeira. Em que é que ela é minha? Em nada, apenas por uma convenção. E por eu estar vivo. Quando eu morrer, ela continuará… como, sob que forma? De onde veio ela, que mãos lhe mexeram, a moldaram, que pessoa a concebeu no papel? No fundo, que história traz ela e que eu ignoro e esqueço sequer de perguntar? Ela existe nas suas superfícies e na sua dureza utilitárias, mas ela é muito mais do que isso. É como um dia, lá fora, que vejo pela minha janela. Uma imagem, apenas. Mas, se eu olhar procurando compreender e abarcar a realidade que ali está, é todo um mundo (a maior parte dele, de mistério) que se apresenta ao meu olhar.

Tento descobrir a face última das coisas e ler aí a minha verdade perfeita. Mas tudo esquece tão cedo, tudo é tão cedo inacessível.

É tão fácil um olhar de superfícies, de opacidades, e também de borboleta. Mas, quando consigo olhar a partir do lugar mais anterior de todos, anterior mesmo às palavras, explodem momentos de iluminação. Infelizmente, depois, eles desaparecem e tornam-se até inacessíveis à memória, em particular à sua evocação.


Sinto, sinto nas vísceras a aparição fantástica das coisas, das ideias, de mim, e uma palavra que o diga coalha-me logo em pedra.

A palavra que diga as coisas fixa-as e elas param de existir no fluir da existência, tal como elas são realmente. Talvez pior do que isso: a palavra nunca acerta. Nunca se encontra a palavra perfeita que revele, que transmita e que contenha tudo o que pretendemos. Não obstante, estamos sempre a tentar. Há milhares de anos. E, quando às vezes nos parece que conseguimos, se deixarmos passar algum tempo, todo o dito perde fulgor e exatidão, e torna-se não mais do que a sombra de uma sombra.

No entanto, vale a pena o esforço, sempre constante, sempre repetido, porque…

Nada mais há na vida do que o sentir original, aí onde mal se instalam as palavras, como cinturões de ferro, aonde não chega o comércio das ideias cunhadas que circulam, se guardam nas algibeiras.

Sim, também preciso de me libertar das ideias que me foram postas pelos outros para explicar tudo, para me tapar a originalidade profunda de tudo quanto existe em mim e à minha volta.

 

(10)

E eu te digo que nada estava ainda escrito, porque é novo e fugaz e invenção de cada hora o que nos vibra nos ossos (...)

Nós inventamos momento a momento. Podemos fazê-lo com as ruínas do nosso passado; ou da nossa rotina. Mas também podemos abrir-nos para o que há de novo.  A minha pergunta "O que é que de bom me está a acontecer agora, neste preciso momento?" pode ser uma via para entrar em contacto com esse sentir original, para essa invenção do que ainda não aconteceu ou, melhor, do que nunca realmente aconteceu.


E outra vez agora me deslumbra, em alarme, a presença iluminada de mim a mim próprio, o eco longínquo das vozes que me trespassam.

Um “Eu Observador(1) que, sem ver propriamente, pressente todo o imenso ruído que constitui a minha vida, tanto interna como externa. Mas, afastado este ruído, eis que me surge…

Mas esta simples verdade de que estou vivo, me habito em evidência, me sinto como um absoluto divino, esta certeza fulgurante de que ilumino o mundo, de que há um fora que me vem de dentro, me implanta na vida necessariamente, esta totalização de mim a mim próprio que me não deixa ver os meus olhos, pensar o meu pensamento, porque ela é esses meus olhos e esse meu pensamento,

Trata-se de conseguir ir-me colocando atrás, cada vez mais atrás, até chegar a um lugar onde já não há mais nenhum atrás. Aí me torno o ser original, que se manifesta por um olhar original, que sente o que Vergílio aqui descreve.

esta verdade que me queima quando vejo o absurdo da morte, se pretendo segurá-la em minhas mãos, revê-la nas horas do esquecimento, foge-me como fumo, deixa-me embrutecido, raivoso de surpresa e de ridículo...

É difícil “ver” realmente a morte. Nem sempre consigo. Então penso: como vai estar este objeto daqui a 20, 30 ou 40 anos, quando eu já não estiver para o ver? O objeto continua, na sua imperturbabilidade, mas vazio, no meio de nada, porque eu já não existo, nada existe, nem ilusões nem nada. Num momento, é o tudo em fulgor de novo e de plenitude; noutro momento, nada. Como explica, a seguir, Vergílio Ferreira:

E, todavia, sei-o hoje, só há um problema para a vida, que é o de saber, saber a minha condição, e de restaurar a partir daí a plenitude e a autenticidade de tudo - da alegria, do heroísmo, da amargura, de cada gesto. Ah, ter a evidência ácida do milagre do que sou, de como infinitamente é necessário que eu esteja vivo, e ver depois, em fulgor, que tenho de morrer. A minha presença de mim a mim próprio e a tudo o que me cerca é de dentro de mim que a sei - não do olhar dos outros. Os astros, a Terra, esta sala, são uma realidade, existem, mas é através de mim que se instalam em vida: a minha morte é o nada de tudo. Como é possível. Conheço-me o deus que recriou o mundo, o transformou, mora-me a infinidade de quantos sonhos, ideias, memórias, realizei em mim um prodígio de invenções, descobertas, que só eu sei, recriei à minha imagem tanta coisa bela e inverosímil. E este mundo completo, amealhado com suor, com o sangue que me aquece, um dia, um dia, - eu o sei até à vertigem - será o nada absoluto, dos astros mortos, do silêncio. Mas tudo isto é quase falso, é quase estúpido só de estar a pensá-lo, a dizê-lo, porque a sua evidência é um milagre instantâneo.

É o saber que tudo irá desaparecer com a minha morte que vai dar uma tonalidade de milagre intenso à minha vida do dia a dia. Assim eu não o esqueça! Assim eu não me distraia! Mas, sempre que o conseguir, …

(11)

(…) é como se me purificasse num tempo anterior à vida, num luminoso halo de coisas por nascerem.

 

O que acontece se partilharmos esta perceção que Vergílio Ferreira aqui expõe aos nossos olhos? Permanecemos mais inteiros, mais nós próprios e talvez mais felizes. Até porque ficaremos menos distraídos e, portanto, menos manipuláveis pela vontade "estranha" dos outros.


Mais uma vez, como de todas as outras vezes, sinto-me apanhado pela magia da escrita de Vergílio Ferreira. A descobrir coisas novas e surpreendentes. Não como da primeira vez, mas muito, muito mais do que a primeira vez. Porquê? Em parte, porque, na primeira vez, o desejar saber como a história se irá desenrolar se mete à frente. Sabida a história, ficamos disponíveis para tudo o resto que o livro tenha para dar. Que, no caso de Vergílio Ferreira, é sempre imenso, imenso.

Mas, e das vezes seguintes? Porque é que sempre que releio um livro de Vergílio, ele surge-me, ele revela-se-me em toda a sua maravilha, como se fosse uma primeira vez absolutamente deslumbrada? Não sei, sei é que nunca se gasta e, quando releio, é sempre um novo livro que me surge à leitura.

 

Tomo as suas mãos nas minhas e no deslumbramento da noite abre-se, angustiada, a flor da comunhão...


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(1) Vejamos o que sobre o Eu Observador tem a dizer (tradução minha) o criador da Acceptance and Commitment Therapy, Steven C. Hayes:

(...) o eu observador não é um objeto de relações verbais. É por isso que "sabemos" menos sobre ele. O eu observador não é uma sensação de si mesmo baseada em conteúdos que podem ser descritos diretamente. (...)

A sensação de um lugar a partir do qual as observações conscientes são feitas é uma sensação estranha porque, para a pessoa que a experiencia, não tem limites conhecidos. Nunca se pode saber conscientemente os limites, porque todo o conhecimento verbal se referencia a si como um [outro] conhecedor.

Este "eu" é ilimitado na medida em que não podemos experimentar nada de que saibamos (ou, para ser muito precisos, de que saibamos que sabemos) sem que esteja nele o "você-como-perspectiva". (...)

(...) Aqui, mesmo no meio do próprio conhecimento verbal, está um evento sem delimitação. Eventos sem delimitação incluem nada [no-thing] (ou como a nossa comunidade linguística veio escrevê-lo mais tarde "nada" ["nothing"]) e incluem "todas as coisas" ["every-thing"]. (...)

Hayes, Steven C. (2005). Get Out of Your Mind and Into Your Life: The New Acceptance and Commitment Therapy / Steven Hayes & Spencer Smith. Oakland: New Harbinger Publications, Inc., p. 107

domingo, 14 de março de 2021

Vergílio Ferreira leu (e apreciou publicamente) escritores novos e obras novas - 1

 


A 30 de junho de 1993, José Saramago escreve nos Cadernos de Lanzarote - Diário I o seguinte:

Fernando Venâncio escreve no Jornal de Letras um artigo — «O homem que ouviu desabar o mundo» — sobre o Vergílio Ferreira, a propósito da Conta-Corrente. E em certa altura diz: «Afirmei, um dia, levianamente, que a ascensão de Saramago se mantivera invisível ao diarista Vergílio. Hoje, dou-me conta que, sob a referência inofensiva, sob o próprio silêncio, é essa partida do destino um dos motores do sofrimento. Vergílio Ferreira jamais perdoará isso aos fados. (E quem, no seu lugar, perdoaria? Na nossa história literária são casos excepcionais as boas-vindas. Deu-as António Vieira a Manuel Bernardes, soube-as dar Filinto a Bocage. Não há memória de muitas mais.) Mas as autênticas contas de Vergílio com o seu tempo, se englobam essa desgraça cósmica que lhe calhou, são bem mais vastas e mais cruéis. Os considerandos poderão ser complicados, mas a tese é límpida: os parvos ainda não perceberam que o romance acabou. Não que Vergílio o saiba de observação, porque ele escassamente lê. “A obra dos outros, mesmo de muito alteados no panegírico, não me interessa absolutamente nada” (p. 73, sublinhado original). Há pior: “De vez em quando uma página ou outra de um autor entusiasma-me e vexa-me mesmo por me entusiasmar” (ib.).» Não comento. Digo apenas que Vergílio Ferreira, no fundo, não faz mal a ninguém. Dói-lhe e morde onde lhe dói para que lhe doa ainda mais, e isso talvez seja uma forma de grandeza.

 

Em 1997, Fernando Venâncio volta a reincidir (Maquinações e Bons Sentimentos – “O render da guarda”, 2002, Campo das Letras, p. 199):

(…) afirmam eles que não se divisam no horizonte «alternativas». Foi exactamente o que, por obra e omissão, andaram dizendo Torga e Vergílio, é o mesmo que declaram hoje Saramago e Cardoso Pires. Enchem a paisagem, e dizem-se pesarosos de não haver mais paisagem. Nunca citam um autor novo, nunca promovem publicamente um valor mais jovem. Desejaríamos vê-los a fazê-lo, de viseira aberta, sem solidariedades viscosas, aceitando um belo risco. Não, depois deles, vem aí o deserto.

 

Não irei explicar porque é que uma leitura literal e superficial da proposta de Vergílio Ferreira de que o romance estava a acabar não será, talvez, a mais correta nem a que fará mais justiça ao pensamento do autor. Também não explicarei a afirmação citada por Fernando Venâncio de que «“A obra dos outros (…) não me interessa absolutamente nada”», embora se lhe aplique o mesmo considerando (já agora, chamo a atenção para o facto de, para Vergílio Ferreira, um itálico ter um significado muito diferente do de um sublinhado - veja-se, um de entre muitos exemplos, o início e o fim de Aparição).

Não. Vou só referir-me ao alegado silêncio a que Vergílio Ferreira condenou os seus contemporâneos mais novos nas lides do romance. Alegado, porque a afirmação efetivamente não se sustenta em confronto com os factos.

Limitar-me-ei à leitura que Vergílio fez dos novos romancistas portugueses contemporâneos de quem gostou e por quem se interessou, tendo dado disso pública notícia, tanto no diário, como em entrevistas. Procurarei não incluir as referências que fez aos de que não gostou (por exemplo, as muitas que fez a António Lobo Antunes ou a Vasco Pulido Valente, entre outros). Não incluirei aqueles escritores sobre os quais não se pronunciou, mas de que apenas deu notícia de estar a ler.

Da sua geração, começarei por incluir José Saramago, Miguel Torga, Agustina Bessa-Luís, António Alçada Baptista, Carlos de Oliveira, João de Araújo Correia e Manuel Vinhas (não referirei Fernando Namora, ou Jorge de Sena, por exemplo, pois destes sabe-se bem que ele os lia). Depois, passarei à geração seguinte.

Esta não será uma lista exaustiva, já que foram imensas as leituras e referências feitas por Vergílio. Apenas apresentarei alguns exemplos mais significativos que procuram mostrar que aquela afirmação não corresponde de forma alguma à realidade. Ficar-me-ei pelos escritores portugueses (não incluirei sequer outros lusófonos) e apenas pelos romancistas (excluirei, portanto, poetas, dramaturgos, ensaístas e filósofos, todos também objeto de leituras por parte de Vergílio).

 

Começaremos com um comentário que Vergílio Ferreira fez, com a sua habitual perspicácia e fina ironia, a propósito do facto de grandes artistas, contemporâneos entre si, não se “verem” uns aos outros:

 

21 de Agosto de 1973, Conta-Corrente 1, p. 164

21 - Agosto (terça). O diálogo entre os grandes génios. Só é possível se eles são de épocas diferentes. Na mesma época são mutuamente incompreensíveis. Só dizem asneiras uns dos outros. Ou simplesmente desconhecem-se. Joyce diz disparates de Stravinski. Gide de Proust. Eça de Mallarmé. Joyce e Proust não se entenderam e surdamente detestaram-se. Matisse ilustrou o Ulisses. Perguntaram-lhe: «Que tal o livro?» E ele: «Nunca o li.» Absorvidos no seu mundo, não compreendem o dos outros. Mas não nos arrepiam, a nós, pequenos, as muitas asneiras dos grandes. É lá com eles. Como no «entre marido e mulher», entre grandes «ninguém meta a colher». Joyce em Paris: não se deu praticamente com ninguém. E tinha já reputação à escala mundial. Não há diálogo possível entre os deuses de religiões diferentes. Só à espada, como soube Maomé e os nossos portugueses evangelizadores. E os católicos e huguenotes. Somos filhos dos grandes, como dos nossos pais. As questões entre uns e outros decidem-se em nós por um sorriso de simpatia.

 

Já mais esclarecidos sobre esta questão, avancemos um pouco no nosso propósito.

 

A 31 de outubro de 1983, no seu Conta-Corrente 4, p. 421, Vergílio Ferreira fala de si como leitor:

(…) Por mim sou sobretudo leitor e leio tudo o que me passa ao alcance. Certo camarada meu dizia-me há tempos que eu tinha dificuldade em admirar. Não é verdade. Se realmente não gosto, não é possível gostar. Pelo menos por então. Porque muitas vezes não gosto e mais tarde o meu não gostar dá o dito por não dito. Mas habitualmente e facilmente, gosto do que escrevem os outros. E fico sempre admirado de eles serem capazes do que julgo que não sou. Excepto, obviamente, se um livro é grosseiro, lapuz, escrito com os pés. Duas coisas realmente são necessárias para me vergar em reverência: a inteligência e a sensibilidade. Duas coisas, aliás, que andam normalmente juntas. É com isso que se faz o «estilo», o autêntico, não com palavras envernizadas, passadas a pano e polirina, mas que nada adiantam em sensibilidade inteligente. É o que pertence aos que escrevem «bem». (…)

 

Nas próximas postagens, provar-se-á que Vergílio Ferreira leu mesmo.

Vergílio Ferreira leu (e apreciou publicamente) escritores novos e obras novas - 2

 Comecemos por alguns escritores da sua geração. E o primeiro, claro, é:

 

José Saramago

1 de Agosto de 1990, Conta-Corrente - Nova Série II, p. 206

(…) Dá-se o caso, aliás, de eu admirar o Saramago por razões que não terão talvez que ver com a sua popularidade. O que me levaria tempo a explicar. (…)

 

24 de julho de 1991, Conta-Corrente – Nova Série III, p. 160

A propósito do Nobel, já agora, o E. Lisboa dá como dada ou provável a entronização do Saramago. Também o creio. Tem currículo, já fez a tarimba de ser badalado no sinédrio, é um «escritor universal», teve ópera sobre um livro, tem qualidade q.b. (…) Porque a grande pugna é entre os dois [José Saramago e António Ramos Rosa].

 

3 de maio de 1992, Conta-Corrente – Nova Série IV, p. 80

Estou a ler o livro alvejado pelo senhor político. Saramago é hábil na condução da história. (…)

 

5 de maio de 1992, Conta-Corrente – Nova Série IV, p. 85

(...) Entretanto ainda vou lendo três livros – o do Saramago, um da Kristeva e Os Infiéis do Dacosta. (...)

 

7 de maio de 1992, Conta-Corrente – Nova Série IV, p. 87

(…) um desses três, que é o Evangelho segundo Saramago, me está a agradar. Porquê? Creio que é por ele manter na sua lengalenga um certo sabor de coloquialidade de velhas histórias contadas à lareira. (...)

Nota: Saramago confirma esta leitura de Vergílio Ferreira, no seu Diário II, a 15 de fevereiro de 1994:

Regresso a um tema recorrente. Todas as características da minha técnica narrativa actual (eu preferiria dizer: do meu estilo) provêm de um princípio básico segundo o qual todo o dito se destina a ser ouvido. Quero com isto significar que é como narrador oral que me vejo quando escrevo e que as palavras são por mim escritas tanto para serem lidas como para serem ouvidas. Ora, o narrador oral não usa pontuação, fala como se estivesse a compor música e usa os mesmos elementos que o músico: sons e pausas, altos e baixos, uns, breves ou longas, outras. Certas tendências, que reconheço e confirmo (estruturas barrocas, oratória circular, simetria de elementos), suponho que me vêm de uma certa ideia de um discurso oral tomado como música. (...)


20 de maio de 1992, Conta-Corrente – Nova Série IV, p. 101

(…) Evangelho, que não considero de modo algum um livro medíocre. (…) que tem sem dúvida a sua qualidade.

 

Note-se agora o que José Saramago diz a 10 de Outubro de 1994 (Cadernos de Lanzarote - Diário II), tendo em atenção que Conta-Corrente - Nova Série IV tinha acabado de ser publicado dois meses antes, em Agosto do mesmo ano:

Mas os escritores, ah, os escritores, com que gozo apontam eles ao desfrute do gentio a simples palha que lastima o olho do colega, com que descaro fingem não ver nem perceber a trave que têm atravessada no próprio olho. Vergílio Ferreira, por exemplo, é um mestre neste tipo de execuções sumárias. Que se saiba, ninguém lhas pediu, mas ele continua a emitir sentenças de exclusão perpétua, sem outro código penal que o seu próprio e incomensurável orgulho sempre arranhado. Dizem-me que se decidiu finalmente a falar de mim na Conta-Corrente, mas não fui lá a correr ler, nem sequer devagar tenciono ir. A diferença entre nós é conhecida: eu não saberia escrever os seus livros e ele não quereria escrever os meus...

Quatro breves reflexões.

Primeira reflexão - A injustiça (a primeira referência a Saramago não é de 1992, mas pelo menos de 1990, como se mostrou atrás) deste "julgamento" de Saramago (que, aliás, nunca é simpático para Vergílio nos seus Cadernos) sobre alguém que até o defendeu publicamente várias vezes (embora, de vez em quando, um tanto ambiguamente), aqui por exemplo:

12 de maio de 1992, Conta-Corrente – Nova Série IV, p. 93

E eu disse:

- Não me fales dessa vergonha do censor que eliminou o Evangelho.

- O quê? tu também és da corda?

- Naturalmente, sou da corda porque foi uma atitude indecente.

- Diz lá ao teu amigo Saramago.

- Sou amigo de relações formais, mas neste caso não se trata de amizade, mas de senso e justiça.


Segunda reflexão - Poderá haver, apesar de tudo, um elogio implícito a Vergílio na afirmação final de Saramago? Que talvez possa ser clarificado deste modo: Saramago reconhece que «não saberia escrever» os livros de Vergílio, mas que este, se quisesse (mas não quer), poderia escrever os livros de Saramago. Bom, Isabel Cristina Rodrigues, professora na universidade de Aveiro, num artigo muito interessante e provocador, põe uma hipótese de interpretação mais prudente:

«Ora, quereria Saramago escrever os livros de Vergílio, se de facto soubesse fazê-lo? Saberia Vergílio escrever os de Saramago, mesmo que nessa tarefa investisse a força da vontade? São questões irrespondíveis estas, não só porque querer não é necessariamente saber (sendo que qualquer saber corresponde a uma verdade individual que recolhe da experiência intransmissível do sujeito muito do seu investimento mundividencial), mas ainda porque, no aparente dissídio das suas obras, os dois autores acabam por encontrar-se de um modo mais profundo do que por ação de um eventual (e deveras excêntrico) travestimento da respetiva identidade literária.» (Isabel Cristina Rodrigues (2018). Vergílio Ferreira e José Saramago: Ensaio sobre o humano. Metamorfoses - Revista de Estudos Literários Luso Afro-Brasileiros da Cátedra Jorge de Sena da Faculdade de Letras da UFRJ, v. 15, n. 1, 15-33)


Terceira reflexão - Quem seria o ou a intriguista («Dizem-me...») que andou a envenenar Saramago? Tem de ser alguém de sua grande confiança, de tal modo que Saramago (que sabia bem o que era ser jornalista) nem se dá ao trabalho de ir verificar com os seus próprios olhos se é verdade. E não é bem verdade, como se pode comprovar em toda esta postagem.


Quarta reflexão - O que Saramago diz dos escritores no início da citação que atrás se apresenta é bastante verdadeiro, pelo menos era-o naquela altura. Infelizmente, com entradas destas nos seus Cadernos, José Saramago acaba por constituir uma amostra exemplar daquilo que ele mesmo aqui critica.


 

Agustina Bessa-Luís


21 de dezembro de 1976, Conta-Corrente 1, p. 386

Ando a ler a Crónica do Cruzado Osb. Não a latina de Osberno, mas o romance da Bessa-Luís. É até hoje o único romance sobre a revolução do 25 de Abril. Por isso mo recomendaram, por isso o leio. Bessa-Luís tem a característica de ser sempre igual e de assim nos não surpreender. (…)

 

29 de abril de 1979, Conta-Corrente 2, p. 259

Lido um livro da Bessa-Luís sobre Florbela. Não desgostei. (…)

 

28 de dezembro de 1981, Conta-Corrente 3, p. 449

(…) Recentemente fez furor uma observação de Bessa-Luís no seu Fanny Owen, aliás um bom livro, (…)

 

 

Miguel Torga


9 de setembro de 1976, Conta-Corrente 1, p. 358

(…) Torga é um bom poeta e um prosador menos bom. sobretudo irrita-me o ficcionista do «pega-lhe com um trapo quente» (…) Da ficção exceptuo os Bichos (…) Mas é um bom poeta porque sabe surpreender, numa linguagem sã, o significado simples e oculto – e inesperado – de uma situação humana em que o homem recusa a sua fragilidade, enfrenta o destino com uma certa dignidade. (…)

Além disso, Vergílio Ferreira admira Torga como homem «exemplar» – 27 de dezembro de 1978, Conta-Corrente 2, p. 234.

 

1 de agosto de 1990, Conta-Corrente – Nova Série II, p. 206

Já o Torga é outra coisa. Eu até gosto suficientemente de alguns dos seus versos, de alguma da sua ficção e de algum do seu diário.

 

6 de outubro de 1990, Conta-Corrente – Nova Série II, p.317

É necessário esclarecer que não tenho nada contra o Torga, que me vão mesmo ao paladar certos versos e certas prosas. (…)

 

 

António Alçada Baptista


5 de fevereiro de 1972, Conta-Corrente 1, p. 108

A leitura das Reflexões sobre Deus, de Alçada Baptista. (…) Gostei? Bastante. (…) De qualquer modo – um livro raro e muito agradável.

 

24 de dezembro de 1985, Conta-Corrente 5, p. 569

Li há dias um romance muito bom e esqueci-me de o anotar. Chama-se Os Nós e os Laços e é do António Alçada Baptista. Bom porquê? Por várias razões como acontece sempre com um livro bom. Acima de tudo gostei dele porque me fez pensar mais do que simplesmente ver, sendo que o que há aí de pensamento não se refere apenas à mente mas ao sistema nervoso. E isto é muito raro na literatura portuguesa. Em segundo lugar gostei da centralização do livro na sublimação do destino do corpo. Gostei ainda da imagem fiel que me dá de uma época e sobretudo de um certo meio. Gostei da escrita oral, mesmo bem cavaqueada. Gostei de certas personagens pela sua humanidade como Gonçalo e Teresa. Gostei da significação humana do projecto de romance que aquele nos expõe sobre Santa Maria Egipcíaca. Gostei muito dos diálogos que relembram a sua matriz platónica. Gostei menos da excessiva acentuação ensaística.

 

 

Carlos de Oliveira


3 de julho de 1981, Conta-Corrente 3, p. 368

(…) girava noutra órbita. Mas, cá de longe, lá lhe ia seguindo a trajectória. Ele foi um bom poeta, foi um menos bom romancista. (…)



João de Araújo Correia


7 de março de 1981, Conta-Corrente 3, p. 269

(...) Não discuto a qualidade do Araújo Correia, que até é um bom escritor. (...)



Manuel Vinhas


18 de outubro de 1976, Conta-Corrente 1, p. 368

Lido um livro, Profissão Exilado, do Manuel Vinhas. Livro bem escrito, sim, senhor. (…)

 

 


Vergílio Ferreira leu (e apreciou publicamente) escritores novos e obras novas - 3

Passemos agora aos realmente novos escritores. Já agora, sobre o escritor Almeida Faria é por demais sabida a admiração de Vergílio Ferreira por este - na altura - jovem escritor, até pela famosa polémica pública em que se envolveu para o defender dos ataques de Alexandre Pinheiro Torres (depois de ter escrito o prefácio à sua primeira obra Rumor Branco).

  


Vários

18 de junho de 1985, Conta-Corrente 5, p. 462

Há dias o jovem escritor Américo Guerreiro de Sousa perguntava-me:

- Você acha que a literatura portuguesa é hoje melhor do que a de ontem?

A de ontem era a minha e a dos meus confrades, mesmo a imediatamente posterior. E eu disse-lhe que sim. (...)

(…) um grupo muito interessante de escritores. O Américo, a Lídia Jorge, a Teolinda Gersão, uma Gabriela Llansol, que aliás conheço mal mas dizem ser de qualidade, Mário de Carvalho e outros que não conheço vieram render a ficção imediatamente anterior em que sobressaía o Almeida Faria e mais atrás um Abelaira, para não falar da geração da velhada a que também pertenço e que foi a mais sujeita à infecção neo-realeira. De modo que a geração mais recente é muito boa, sim, senhor. Mas não esquecer que quem deu o corpo ao manifesto fomos nós, quem cavou, suou, foçou para haver lindas flores fomos nós e quem errou e deu maus exemplos para não serem seguidos e se acertar com mais plausibilidade foi também a minha geração, das mais desgraçadas que se deram à ideia de existirem. É assim.

 

Vergílio Ferreira (1981). Um Escritor Apresenta-se. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda.

Devo dizer-lhe que os novos que mais fortemente me têm impressionado são: Almeida Faria, Herberto Helder e Luiz Pacheco. (306/307)

(…) Almeida Faria, Herberto Helder, (…) Luiz Pacheco (…), o João-Palma Ferreira (…), o David Mourão-Ferreira desse excelente Os Amantes, a Yvette Centeno (…), a Maria Isabel Barreno (…), uma Maria Velho da Costa (…), (…) Beatriz Barbosa (…) – são, entre outros, nomes a ter em conta para o arejamento e a renovação da nossa literatura. (308)

(…) Mas outros nomes a fixar de escritores pós-neo-realistas (ou que do neo-realismo realmente divergiram ainda que isso neguem) serão os de Fernanda Botelho, Maria Judite de Carvalho, Augusto Abelaira e o de um inesperado e ácido e de muita alta qualidade, Luiz Pacheco, (…) (310)

Grandes contos de hoje? Alguns de Torga, Branquinho da Fonseca, Manuel da Fonseca, Gomes Ferreira, Maria Judite de Carvalho (melhor na novela), Urbano Tavares Rodrigues (talvez antes novelista do que contista), Herberto Helder (um contista sui generis), Cardoso Pires. (311)

Já no romance (…) Adiantemos três nomes para já: João Alves da Costa (…), Armando da Silva Carvalho (…) e particularmente Mário Cláudio (…) (340)

 

Vergílio Ferreira, em entrevista a Clara Ferreira Alves, no Expresso de 22 de março de 1986, p. 31-R:

(CFL) - E a si que novos autores portugueses o entusiasmam?

(VF) – Gosto muito do Mário de Carvalho, é giro, tem imaginação, escreve bem. Gosto da Teolinda Gersão, da Lídia Jorge, e muito, muito, dos primeiros livros do Mário Cláudio, que está, agora, a aproximar-se do perfeccionismo. E há o Américo Guerreiro de Sousa. E, mais velhos, o Abelaira, o Alçada Baptista, com as últimas coisas. Há gente de qualidade para manter a chama acesa.

 


Mário de Carvalho


Vergílio Ferreira, em entrevista a Clara Ferreira Alves, no Expresso de 22 de março de 1986, p. 31-R:

(CFL) - E a si, mandam-lhe muitos livros com dedicatórias elogiosas?

(VF) - Constantemente. E não ignoro as solicitações. Ainda hoje recebi um. Leio, e mando sempre duas palavras.

Mário de Carvalho confirma:

Surpreendentemente, de todas as vezes que enviei um livro a Vergílio Ferreira, recebi uma resposta, e amiga e circunstanciada. A mim, que mal o conhecia, e que não estava a contar com resposta nenhuma. (Mário de Carvalho em In Memoriam de Vergílio Ferreira, p. 52, Bertrand Editora)

 

 

Mário Cláudio


25 de janeiro de 1977, Conta-Corrente 2, p. 9

25-Janeiro (terça). Li um belo livro de Mário Cláudio - As Máscaras de Sábado. Gostei mais que do anterior Um Verão Assim. É um romance poético em que tudo se dilui em névoa, donde emerge uma Cidade e uma Casa e através da qual perpassam esboços de figuras como o Tio, Paulette, Ana, outros. Uma coisa que me intrigou - aquele Gaio Valério Catulo, que tem aqui um halo de imperador e é o poeta romano lírico-erótico, contemporâneo de Cícero e Lucrécio. A reflectir sobre o que anda a fazer aqui no livro. Escrita próxima da do Almeida Faria?

 

31 de outubro de 1977, Conta-Corrente 2, p. 135

31-outubro (segunda). Acabei ontem de ler Portuguex, de Armando Silva Carvalho. Já lera dele há tempos O Uso e o Abuso. E pouco a pouco vai-se-me desenhando a orientação dos nossos jovens escritores: este, Maria Velho da Costa, Mário Cláudio, João Alves da Costa, outros. Seguem à risca o princípio de Jean Ricardou: até hoje o romance foi a escrita de uma aventura, hoje é a aventura de uma escrita. Como se as duas coisas fossem incompatíveis. Não, não defendo a historieta, a anedota, a narrativa folhetinesca. Mas que ao menos a gente entre no banquete e não fique só a ver. Mário Cláudio é quanto a isso o mais legível. A gente chega ao fim com alguma coisa no estômago. Os outros são como esses doces de claras: volumosos, aparatosos, mas mastigamo-los no vazio. Se calhar eles é que estão certos: o vazio é o nosso signo.

 

2 de setembro de 1979, Conta-Corrente 2, p. 306

(…) Várias cartas à minha espera. Uma de Mário Cláudio a agradecer-me o eu gostar dos seus livros - e o tê-lo dito. Ele é a melhor promessa da jovem literatura. Tem o sentido da subtileza, do lance poético, da leveza para se «desprender» do real e da sua força de gravidade. (…)

 

 

Teolinda Gersão


25 de Maio de 1979, Conta-Corrente 2, p. 263

25-Maio (sexta). Li um romance inédito de uma estreante – Teolinda Gersão. E como sempre que é uma estreia, lido em forte expectativa. Livro bem montado e de escrita directa, penetrante, de viva observação. Li-o com gosto, direi com prazer. Anotação concreta, sem fugas, com cada pormenor a valer. E uma construção da frase calculada a fita métrica, com o adjectivo preciso no seu lugar, metido a tempo para aguentar o ritmo. Já o tema me interessou menos: tensões domésticas entre dois casais. Mas o silêncio final a que vão dar, tem um sentido que me fala. Robbe-Grillet, suponho, orientou a montagem; e Virgínia Woolf (e certa Clarice Lispector) orientou a valorização do pormenor, no seu modo de o circunscrever, o fechar em si, o isolar. E findo o livro, uma obscura alegria me tomou, contentamento quase clandestino, o de ter mais um cúmplice, nesta loucura de encher a vida a escrever romances. Como se numa multidão indiferente alguém erguesse a voz para me saudar. Como se num deserto alguém esperasse para lhe passar o testemunho. Como se de repente eu fosse menos louco.

 

2 de junho de 1984, Conta-Corrente 5, p. 127

E finalmente houve a leitura em letra impressa de Os Guarda-Chuvas Cintilantes da Teolinda Gersão e que é um falso diário que muito me entusiasmou, muito mais do que excitou quando o li dactilografado. Ele é realmente uma pequena preciosidade de engenho, graciosidade, originalidade, virtuosismo e cintilação. E eis por hoje.



Augusto Abelaira


1 de Dezembro de 1979, Conta-Corrente 2, p.331

Acabado de ler o último livro de Abelaira, Sem Tecto Entre Ruínas. É curioso como este homem se apaga diante dos seus parceiros de clube. E, todavia, pela cultura, agilidade mental e modernidade, é-lhes, decerto, bastante superior. (...)


21 de Abril de 1981, Conta-Corrente 3, p.319

(...) Vou ler o último romance do Abelaira, que tem o belo título medievo de O Triunfo da Morte. (...) Lido o livro do Abelaira. Bom jogo, boa agilidade mental, boa informação. (...) porque é um livro inteligente eu o li sem pausa. (...) Mas nesta simples leitura, e de vez em quando, dei comigo a rir alto. De todo o modo, portanto, ganhei a tarde.


Vergílio Ferreira leu (e apreciou publicamente) escritores novos e obras novas - 4

 E agora, duas grandes escritoras que foram também duas suas grandes amigas:

 

Lídia Jorge

28 de Maio de 1980, Conta-Corrente 3, p. 53

28-MAIO (QUARTA). Não, não falei ainda dela, ou já? 0 seu caso ocupou uma larga mancha do acontecer quotidiano, devo ter falado. Ontem esteve aí. É uma rapariga jovem, já com dois filhos e divorciada. Um dia a Regina pediu-me que lesse um romance de uma colega, a ver se tinha qualidade e se publicava. Li meia dúzia de páginas e isso bastou, como de costume, porque a «qualidade» ou a falta dela manifesta-se logo em dois ou três períodos. Era um livro fora do vulgar. Lyon de Castro, da Europa-América, queria o meu aval para se decidir. Tinha acabado de ler todo o livro, disse-lhe que era coisa de tabela alta. Publicou o livro, chama-se 0 Dia dos Prodígios. Escrevi um breve artigo a chamar a atenção e imediatamente começa a ser um «caso». Críticas favoráveis de todo o lado, as esquerdas a tomarem a coisa à sua conta no equívoco costumeiro de haver «povo» no romance, colóquios na rádio e TV - e a primeira edição desapareceu. Ora o livro não tivera o «prémio de revelação» da APE, que fora atribuído a um outro romance, 0 Mesmo e o Outro, de um Luís Martins. Expectativa quanto à maravilha premiada, necessariamente superior ao livro da Lídia Jorge. Ramos Rosa emprestou-me um exemplar, ainda não à venda. Forte decepção. Mas compreendi a razão do equívoco. É um livro que se desenvolve a um nível de temática já adulta. Falhada, todavia, a mão que o manipula. Porque o que se diz é sempre o como se diz. E neste caso a própria sintaxe leva a sua canelada. Lídia Jorge sofreu uma decepção que o êxito não compensou. Lá a compensei eu com uma exposição em forma do que era a obra premiada. Ficou mais em sossego. E agora? Agora é o mistério da sequência de uma obra que acertou. Leio nela a semente de outros livros possíveis e isso dá confiança. Porque há bons livros que em si mesmos são um começo e um fim. Continuar – só para dizer o mesmo. E há livros menos bons que trazem o sinal do que pode abrir em muitas obras futuras. Kafka seria um autor menos feliz, se tem durado 70 anos. É o que acontece com os livros muito marcados pelo processo. Sao autores também quase sem descendência, a menos que abram caminho pelo lado menos visível. Bom. Esteve aí a Lídia Jorge. 0 que a deve salvar é que tem muito a aprender. E tem, para o que aprender, a força orgânica do talento que se não aprende e há-de pôr a ser vivo isso que ainda não sabe.

 

13 de dezembro de 1984, Conta-Corrente 5, p. 288

E afinal ia agora mesmo sê-lo não me referindo ao lançamento de ontem do livro da Lídia Jorge. Foi no Hotel Tivoli. Notícia da Cidade Silvestre é um romance poderoso, intenso, sem constrangimentos de escrita, directo, repleto de coisas no mínimo período ou frase e que trouxe para a nossa literatura uma das suas mais extraordinárias personagens que é a Anabela Cravo. Tem defeitos para o meu gosto e programação dele. Mas em face das virtudes, anotá-los aqui é mesquinhez. Assim fico, pois. E creio que agora estou inteiramente despachado.

 

20 de setembro de 1992, Conta-Corrente – Nova Série IV, p. 187

Lídia Jorge publicou um novo romance A Última Dona. Comecei a lê-lo com muito interesse. Eu dissera-lhe em tempos – o romance que você e os seus amigos praticam já não funciona, é preciso que você «dê o salto». (…)

 

 

Gabriela Llansol


12 de dezembro de 1989, Conta-Corrente – Nova Série I, p. 276

Ontem visitaram-nos a escritora Gabriela Llansol e o marido Augusto, que vivem no Banzão (Praia das Maçãs). Gabriela é uma escritora estranha ou «inclassificável», como diz E. Lourenço (…). Um dia falarei da arte da Gabriela.

 

14 de abril de 1990, Conta-Corrente – Nova Série II, p. 88

14 - Abril (sábado). Ontem esteve aqui a Gabriela Llansol e o Augusto, o marido. (…) Gabriela é uma escritora singular. Fechada no seu mundo sem portas, a gente lê­ a e pressente o seu aviso de «pegar ou largar». Não faz concessões. A dimensão desse seu mundo é o do insólito, do mistério visível, de um impossível possibilitado pela nudez à vista, sem sombras, sem estranheza que se diga estranha, realizada no coração das coisas, mas tangível, sem subenten­didos, imediato, real. Ela exige pois uma óptica que não temos e há que inventar. Gabriela diz-me que vários leitores a lêem com entusiasmo. Sinal de que já têm essa óptica. Por mim, não a tenho ainda afinada. O que sinto e vejo é que o seu mundo é coerente, é pois uno, autêntico, não sustentado por qualquer mistificação. E esse é um sinal seguro da sua qualidade. E de que é profundamen­te original. E de que o alimenta uma segura consciência do que é.

(…) Mas em toda a conversa, pouco me esclareci sobre o seu projecto literário. Suponho mesmo que, fechada nele, pouquíssimo lerá. Pois ler o quê? para quê? Armou a sua tenda no deserto. E os outros escritores moram em casas urbanas. É assim.

 

20 de novembro de 1990, Conta-Corrente – Nova Série II, p. 368

(…) E com este livro, Gabriela ofereceu-me uma plaquetezinha com um texto sobre o seu cão «Jade», ilustrado por Ruth Rosengarthen. Que texto belíssimo. De uma poesia misteriosa que se não sabe donde vem, porque se não separa do real, mas está nele. Há o inesperado e subtil desvio de um percurso possível para um outro inesperado e estranho e incisivo. Gabriela «habita» o mistério, está nele, faz parte dele, mas esse mistério é material, concreto, imediato. Como é um texto muito curto, o leitor segue-a no inesperado e insólito do seu percurso sem fatigar a atenção. É assim um texto que favorece a iniciação à leitura desta autora estranhíssima ao nosso hábito do possível. Tem o título muito belo de «Amar Um Cão». Li-o duas vezes. Aguenta perfeitamente uma terceira.

 

8 de janeiro de 1991, Conta-Corrente – Nova Série III, p. 17

(…) Gabriela é uma escritora muito sui generis, a mais distanciada da comunidade das letras. Os seus livros não têm uma «história» mas nem sequer pequenas «histórias» ou fixação de referências que nos permitam saber onde estamos. Praticou a mistura das épocas, chamando à escrita figuras que viveram em séculos diferentes (São João da Cruz, Münster, Nietzsche, etc.). E a sua arte consiste em dar-nos observações muito originais, não propriamente reflexões, interpretações ou imagens, metáforas, mas uma certa natureza das coisas dada em cru, sem concessões, o que torna a sua leitura rebarbativa por não suster a atenção do leitor que naturalmente se transvia em anotações dispersas, pontilhistas, sem emoção. Não há assim surpresas de inteligência, ou afectivas, há só um espraiar por espaços pedregosos e normalmente fechados, estreitos, mesmo quando abrem janelas para fora. Mas uma leitura lenta, como a que é de exigir, se não desistirmos de ler por ser isso trabalhoso, revela-nos um espírito muito original e uma atenção muito viva. Gabriela pratica o que apetece chamar uma espiritualidade material. Porque ama o espírito ou a essência das coisas, mas descobre-as na materialidade delas, na dureza delas, no seu lado ósseo. Este último livro - Um Beijo Dado Mais Tarde - parece-me o seu melhor até hoje. Porque se atenua o seu lado cru na evocação da infância, numa corrente de afectividade que fala um pouco à nossa emoção, numa fixação mais demorada em pessoas e coisas (destaco o VI Capítulo). Os títulos são também sempre inesperados, estranhos, desconexos da nossa harmonização para receber títulos, mesmo os originais, porque são títulos duros, crus, inesperados e desabitados de emotividade (e naturalmente de vulgaridade). Há uma maneira de se ser original que encaixa todavia no mol­de da nossa receptividade. A originalidade de Gabriela não se ajusta aos nossos moldes, há pois que bater-lhe um pouco para entrar. Em todo o caso, ou porque tenho já alguma habituação ou porque me reconheço em certo vocabulário deste livro («enigma», «para o lado da vida eterna», etc.), li quase de jacto este livro sem ter de o triturar nestes meus dentes, já pouco enérgicos para atacar matérias duras.

 

 

Em suma, Vergílio Ferreira não lê novos romancistas seus contemporâneos?

Pelo contrário, como se mostrou aqui, não só ele lê imenso, como às vezes até se deixa arrastar por um entusiasmo que é quase infantil na sua expressão. Mas que não deixa, no entanto, de ser lúcido: veja-se como as suas previsões acerca de Lídia Jorge, Gabriela Llansol, Mário Cláudio, Teolinda Gersão ou Mário de Carvalho se cumpriram plenamente.

quarta-feira, 10 de março de 2021

Ler e «entender» Vergílio Ferreira

(…) Porque eu cheguei ao limite de ser “incomparável”. Não porque nisso me arrogue uma superioridade, que é idiota, mas porque o que sei agora ter sempre procurado só obliquamente se poderá parecer com o que realizaram os outros. Tal como se diz que um cavalo é incomparável com o pão-de-ló. Seja eu o cavalo e o pão-de-ló os outros. Não interessa. O que interessa é que me encontro agora sozinho comigo mesmo e sou eu que tenho de aguentar-me na minha navegação solitária. É um bem? Um mal? É um facto. (…)

O percurso de Vergílio Ferreira é tão original, a sua obra é de uma tal riqueza e profundidade, que não admira que ele se encontre agora sozinho comigo mesmo (…) na minha navegação solitária.

Só que talvez não sozinho, realmente, como admite umas linhas à frente:

(…) Ninguém fala a mesma língua, mesmo na mesma língua. A que eu falo na que é de todos só alguns poucos a entendem. É o que basta para não ser o louco que fala sozinho.

Sim, haverá alguns que não entendem. Ao contrário de muitos outros, eu incluído, creio. Para nossa tão única, tão frágil felicidade.

(de Conta-Corrente Nova Série II, 1 de Outubro de 1990, p.309, Bertrand Editora)

Aparição - Capítulo 10

  10. Trabalho no Liceu com entusiasmo - o entusiasmo do principiante, ou seja, do que ainda está criando. (...) (108) (...) Mas eu sabia, e...